Safra recorde ajudou a trazer inflação para a meta em 2023, mas impacto de fenômeno climático sobre preços de alimentos é desafio neste ano
O El Niño – um fenômeno climático com histórico de afetar potências agrícolas como o Brasil – voltou com força total na América do Sul, desencadeando chuvas torrenciais em algumas partes do país e deixando outras extremamente secas. Como resultado, preços de produtos básicos (como arroz e as batatas) dispararam, desafiando tanto os planos do Banco Central de continuar os cortes na taxa de juros, conforme exigido por Lula, como suas promessas de campanha de reduzir os preços para os brasileiros.
— O El Niño é pior do que o esperado — disse Adriano Valladão, economista do Santander. — Prevemos que a inflação será pior em janeiro e o clima afetará os alimentos mais voláteis.
Em dezembro, a inflação em 12 meses continuou a desacelerar dentro da meta do Banco Central, segundo os dados do IBGE divulgados na semana passada. Mas os preços dos alimentos contrariaram a tendência, à medida que os efeitos climáticos do El Niño – que já afetaram a produção e causaram problemas em regiões da Ásia – começaram a atingir o Brasil.
Ficaram mais caros o arroz, o feijão, as frutas e as batatas devido às altas temperaturas e às fortes chuvas. A alimentação no domicílio, onde os efeitos são mais evidentes, ficou 1,3% mais cara em dezembro, bem acima da alta de 0,75% observada em novembro.
Os economistas estão revisando para baixo as estimativas do Produto Interno Bruto (PIB) de 2024. E se o fenômeno climático se mostrar tão intenso como foi há quase uma década, poderá agregar 0,8 ponto percentual à inflação geral, na passagem de 2023 para 2024. É o que estima a maioria dos analistas que participaram de pesquisa do Banco Central em dezembro.
O El Niño fez com que o BC aumentasse as suas estimativas de inflação, disse Diogo Guillen, diretor de Política Econômica da autoridade monetária, em evento virtual na semana passada, organizado pelo J.P. Morgan. Mas acrescentou que “não é algo que muda tudo”.
Preços em alta, previsões de crescimento em queda
Na América do Sul, o Peru e a Colômbia enfrentam os maiores riscos relacionados ao El Niño, devido aos potenciais impactos na energia hidrelétrica, na agricultura e na pesca, segundo William Jackson, economista-chefe para mercados emergentes da Capital Economics.
A Argentina, por outro lado, provavelmente desfrutará de alguns benefícios do fenômeno que poderão ajudá-la a aliviar o nível recorde de seca que devastou a economia.
— Em termos de riscos, o Brasil está em algum lugar no meio — disse Jackson.
PIB do agro pode ser negativo em 2024
Algumas áreas do Brasil também podem se beneficiar das tempestades relacionadas ao El Niño. Mas a importância da agricultura para a economia significa que mesmo pequenos impactos nas culturas podem representar riscos consideráveis. Os meteorologistas veem os efeitos do El Niño na América do Sul começando a enfraquecer, mas a escassez de produção levou o Itaú a revisar sua previsão do PIB agrícola de 2024 para 0,7%, abaixo da estimativa anterior de 2,5%.
— Num cenário extremo, podemos ver um PIB agrícola negativo — disse Natalia Cotarelli, economista do Itaú.
Mesmo que o El Niño continue relativamente ameno, o setor agrícola não deverá apresentar crescimento em 2024, avalia Felippe Serigati, pesquisador do centro de estudos do agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Outros efeitos do El Niño já são mais claros. Tempestades extremas no sul do Brasil, importante área de produção agrícola, causaram inundações que atrasaram o plantio deste ano no Rio Grande do Sul, o principal estado produtor de arroz do país. Como resultado, os preços do arroz no atacado aumentaram 40% em 2023 e, só em dezembro, aumentaram quase 6%.
— O custo da colheita deste ano aumentou significativamente devido aos desafios climáticos — disse Alexandre Velho, agricultor e diretor da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz).
Alimentos mais caros nas gôndolas
Os produtos provavelmente ficarão mais caros nos próximos meses, disse Margarete Boteon, professora de economia da Universidade de São Paulo. As chuvas também afetaram as colheitas de trigo e provavelmente farão com que os preços da farinha subam, segundo a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo).
Enquanto isso, centros agrícolas do norte e centro do Brasil receberam menos chuva do que o esperado, o que reduziu as projeções para a soja, o principal produto agrícola de exportação do Brasil. Os produtores de Mato Grosso, maior estado produtor de soja, relataram a necessidade de replantar 4% da área, o que se traduz em custos mais elevados, segundo o Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea).
Não se espera que os preços de grãos subam, mas agora parece certo que muitos agricultores enfrentarão perdas financeiras, disse Leonardo Alencar, analista da XP. Enquanto isso, empresas como a SLC Agrícola, maior empresa produtora de grãos e fibras do país, já revisaram suas previsões para baixo.
As autoridades brasileiras podem sentir algum conforto no fato de a América Latina ter registado até agora efeitos relativamente moderados, disse Jackson, da Capital Economics.
Ainda assim, o El Niño destaca o risco crescente que as condições meteorológicas extremas trazem para os países que dependem fortemente da agricultura para estimular as suas economias.
— Os riscos a longo prazo das alterações climáticas tornarão os eventos climáticos severos mais frequentes e provavelmente levarão a uma inflação mais elevada e mais volátil — explicou Jackson.
Fonte: O GLOBO
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