Delegado cita 'comportamento violento' de dupla presa. Quadrilha teria promovido ataques entre povos originários

Dois indígenas tidos como lideranças do povo Tembé Tenetehar, do Pará, foram presos numa ação da Polícia Federal, na última segunda-feira, suspeitos de liderarem conflitos armados envolvendo povos originários no município de Tomé Açu, cenário da chamada "guerra do dendê". Segundo o inquérito da PF, que culminou na Operação Guaicuru, eles teriam promovido a prática de crimes como tentativa de homicídio, associação criminosa, formação de uma milícia privada e posse ilegal de arma de fogo.

As investigações apontam que os dois líderes Tembé criaram uma espécie de milícia e vinham liderando uma série de conflitos armados na disputa por terras produtivas de dendê, de onde se extrai o azeite de dendê, também conhecido na indústria como óleo de palma. Além da utilidade no ramo alimentício e de cosméticos, trata-se de uma das matérias-primas mais eficientes para produção de biocombustíveis e está em alta no mercado internacional.

O delegado federal Vinícius Lima, à frente do inquérito, esclarece que não se trata de uma tribo inteira comandada por uma milícia, mas sim de um grupo criminoso privado e supostamente chefiado pelas duas lideranças. A organização contaria também com não-indígenas.

— As tribos não se transformaram em milícias. Algumas lideranças constituíram milícias privadas com não indígenas — frisa. — Algumas ações violentas e criminosas são mobilizadas por indígenas e com participação e fomento dessas lideranças. Então, não é uma questão da comunidade indígena, são essas duas lideranças específicas que têm esse comportamento violento. Boa parte da comunidade age pacificamente sem ter problema.

Lima afirma que a polícia ainda investiga de onde viriam as armas e o dinheiro que financia a suposta organização criminosa. Segundo ele, o inquérito foi instaurado por conta do "aumento da violência da comunidade indígena". A ação teve como objetivo "restabelecer a ordem pública na região de Tomé-Açu, sobretudo em relação aos conflitos que envolvem as comunidades tradicionais".

Os investigadores pontuaram que "existem disputas entre os próprios Tembés e também deles com quilombolas, por terras produtivas de dendê". A apuração detectou ainda que os presos se valiam das condições de lideranças para o cometer diversos crimes, inclusive contra a própria comunidade indígena.

Um dos indígenas teve mandado de prisão cumprido no Aeroporto Internacional de Belém. Também investigado por uma suposta ameaça a servidores do Ibama, ele estava a caminho de São Paulo quando foi abordado por uma equipe da Polícia Federal.

O outro líder foi preso pela Polícia Rodoviária Federal, com base em informações apuradas pela PF e pela Polícia Civil. A abordagem foi na rodovia BR-010, a caminho do município de Tomé Açu.

Briga entre indígenas e empresa de extração de dendê

Nas regiões de Tomé-Açu e Vale do Acará, há uma antiga e complexa disputa territorial travada entre os povos originários e a empresa Brasil BioFuels (Grupo BFF) — antiga Biopalma —, que extrai e produz mais de 200 toneladas do óleo de palma anualmente em cerca de 75 mil hectares na Floresta Amazônica. De um lado, indígenas afirmam que a BFF avança sobre territórios demarcados e que age com violência; do outro, a empresa diz que atua em áreas autorizadas e que sofre com "invasões ilegais" e igualmente violentas.

Em junho do ano passado, após uma tentativa de assassinato contra o cacique Lúcio Tembé, a promotoria paraense chegou a citar que, desde a instalação da empresa, em 2008, "vários episódios de violência contra indígena ocorreram". O posicionamento fez com que o grupo reagisse, afirmando que "Tomé Açu e Acará estão dominadas pelo crime" e que "invasores indígenas e o crime organizado tomam conta do local". 

A nota dizia ainda que "as áreas invadidas se tornaram pontos de tráfico de drogas, motivação da tentativa de assassinato do cacique", e acrescentava que "trabalhadores e moradores são vítimas desta teia do crime, que age no roubo de frutos de dendê para vendê-los a empresas receptadoras que atuam de forma ilegal na região".

Procurada nesta terça-feira (30) pelo GLOBO, após a notícia da prisão das lideranças indígenas Tembé, o Grupo BFF afirmou que "não teve qualquer participação no caso" e que "a companhia reforça promover diálogo aberto e construtivo com as comunidades onde atua, buscando o bem viver e o desenvolvimento socioeconômico do entorno de suas operações na região Amazônica".

A reportagem não conseguiu contato com representantes da Associação Indígena Tembé de Tomé-Açu, cujo líder foi preso, ou com a Federação dos Povos Indígenas do Pará. Também procurada, a secretária estadual dos Povos Indígenas do Pará e líder da etnia, Puyr Tembé, não retornou o contato.

No ano passado, em nota assinada pelo líder da Associação Indígena Tembé de Tomé-Açu, Paratê Tembé, de 29 anos, os indígenas afirmaram que a BBF tentou, através de seu posicionamento, "criminalizar suas lideranças e a luta que travada pela retomada de seus territórios ancestrais, ocupados atualmente pela empresa".

"A BBF, aproveitando-se dos eventos que cercam a tentativa de homicídio de uma de nossas principais lideranças, o cacique Lúcio Tembé, passou a fazer acusações graves e mentirosas contra o nosso povo, com o intuito leviano de desvirtuar as narrativas e ofuscar a verdadeira origem dos problemas que fazem parte do cotidiano de nossas aldeias", dizia a nota.

"Em nota enviada à imprensa pela empresa, insinuam e tentam vincular os indígenas à práticas criminosas que não fazem parte das nossas tradições e as quais abominamos, como tráfico de drogas. Nosso povo não tem nenhuma associação com grupos criminosos que atuam na região, como quer fazer parecer a empresa. Ao contrário disso, como já mostrou a investigação comandada pelos órgãos de segurança, o cacique Lúcio Tembé foi alvo de um atentado justamente por combater possíveis usuários e traficantes de drogas em nossa Terra Indígena", prossegue.

"As ilações da BBF contra o nosso povo nos deixa em uma situação ainda maior de vulnerabilidade porque desperta a revolta popular contra nós indígenas, porque faz com que seus funcionários alimentem um ódio injustificável contra nossas lideranças, as mulheres, crianças e todos os integrantes das nossas aldeias", conclui o texto.


Fonte: O GLOBO