Eliminação da substância na extração de ouro foi garantida pelo petista ainda na campanha eleitoral, mas segue distante da realidade

Os 700 quilos de mercúrio apreendidos pelo Ibama na Amazônia no ano passado e uma operação da Polícia Federal contra o contrabando do produto mostram que ainda está distante o fim do uso do metal nos garimpos do país. A eliminação do mercúrio na extração de ouro foi prometida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda na campanha eleitoral. Mas o mercado clandestino do metal está cada vez mais estruturado.

O mercúrio separa o ouro dos demais sedimentos e forma uma liga metálica. A liga é queimada, liberando o metal no ar, que volta ao meio ambiente pelas chuvas. Os garimpeiros arriscam a própria saúde, além de poluírem os rios com peixes que alimentam habitantes da Amazônia. 

Ele não é produzido no Brasil, onde seu emprego legal é limitado a laboratórios e na fabricação de pilhas, baterias, lâmpadas, cloro, soda cáustica e produtos odontológicos. No entanto, é encontrado com facilidade em lojas para produtos agrícolas de cidades como Boa Vista e Itaituba (PA), onde a economia gira em torno da exploração do ouro. Nesses locais, o mercúrio é conhecido como azougue.

Também há anúncios de venda de 100 gramas do metal por R$ 250 nos sites Mercado Livre e Shopee. Nos comentários de um dos anúncios encontrados pelo GLOBO, um internauta pergunta se é o mesmo produto usado no garimpo e outro se “separa pó de ouro da lama”. 

O vendedor responde “sim” às duas questões. Após ser informado, o Mercado Livre tirou a oferta do ar e informou que “assim que identificados, tais anúncios são excluídos e o vendedor notificado, podendo ser banido da plataforma”. Procurada, a Shopee não se pronunciou até o fechamento desta edição.

Contaminação por mercúrio usado no garimpo ilegal — Foto: Arte O Globo

Convenção para banir


Desde 2013, o Brasil é um dos 128 signatários da Convenção de Minamata, que prevê a eliminação ou diminuição do uso do mercúrio no mundo. Minamata é a cidade japonesa cuja população foi envenenada por mercúrio industrial despejado na baía que banhava a cidade, nas décadas de 1950 e 1960.

— O Brasil está se candidatando a virar uma segunda Minamata. O país assinou a convenção, mas não faz o controle nem a repressão devida — critica Sergio Leitão, diretor do Instituto Escolhas, que faz estudos sobre desenvolvimento sustentável.

Investigações da Polícia Federal e do Ibama na Operação Hermes (nome original grego do deus que batiza o metal), desmantelaram um esquema que trazia o produto do exterior para garimpeiros. Ele usava o Aeroporto de Viracopos, o segundo maior terminal de cargas do país, rotas clandestinas na fronteira e uma mineradora que tem como sócio Luis Antonio Taveira, filho mais velho do governador do Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil).

A empresa que despertou a atenção da PF na Operação Hermes ficava em Paulínia, na região metropolitana de Campinas (SP). Os investigadores apontaram que a companhia era usada para forjar a legalidade do mercúrio e revendê-lo a mineradoras do Mato Grosso e do Pará.

Segundo a polícia, a empresa alegava que obtinha o metal da reciclagem de lâmpadas descartadas. Mas boa parte era importada da China e do México, que possuem grandes minas de cinábrio, de onde é extraído o mercúrio. Parte das mercadorias chegava pelo Aeroporto de Viracopos.

‘Dodo Escobar’

Em uma das mensagens captadas na operação, o empresário e ex-vereador de Cuiabá Arnaldo Veggi se gaba de um carregamento que chegou ao Brasil sem obstáculos. “A mulher declarou; veio com fatura e tudo mais; não parou em lugar nenhum”, diz Veggi. O interlocutor o chama de “Dodo Escobar”, em referência ao traficante de drogas colombiano Pablo Escobar. Filho de um químico, Veggi foi preso em fevereiro na primeira fase da Hermes e solto pela Justiça Federal. Procurada, a defesa do ex-vereador não se pronunciou.

Apesar do transporte via aérea, a rota ilegal mais comum são estradas na fronteira entre a Bolívia e o Mato Grosso — uma das empresas usadas no esquema ficava em Santa Cruz de La Sierra. Em uma conversa captada em julho de 2021, um investigado fala de um novo fornecedor que teria “três toneladas de mercúrio paradas na Colômbia”.

Uma das compradoras do mercúrio ilegal, segundo a PF, era a mineradora Aricá, no Mato Grosso, que teria adquirido a carga em junho de 2022. A companhia tem como sócia a empresa Sollo Mineração, cujo dono é Luis Antonio Taveira, filho de Mauro Mendes.

Conforme as investigações, a venda do metal foi disfarçada com notas fiscais de compra de bolas de aço. A PF pediu a prisão temporária de Taveira. Mas a Justiça só autorizou um mandado de busca, o recolhimento do passaporte e o bloqueio de bens do filho de Mendes.

Procurada, a defesa de Taveira não se pronunciou. A Secretaria de Comunicação do Mato Grosso afirmou que o governador “não é citado em nenhuma linha da investigação, pois não tem nenhuma atividade como pessoa física ou jurídica ligada aos fatos da operação Hermes”.

Disfarçado de xampu

Apenas na operação Hermes II , em novembro, a PF apontou que uma das empresas investigadas comercializou mais de 5 toneladas de mercúrio ilegal em dois anos. O prejuízo com potenciais danos ambientais foi estimado em R$ 5 bilhões. A Justiça bloqueou R$ 2,9 bilhões nas contas dos alvos desta fase da investigação.

A PF descobriu que a organização escondia o produto em frascos de xampu (“quem envia xampu de 10 quilos?”, debochou um alvo da operação sobre a falta de fiscalização, em uma conversa interceptada), martelos, halteres de academias de ginástica ou peças de carros.


Fonte: O GLOBO