Trabalho com o apoio do Ministério da Justiça vai possibilitar que pelo menos 57 chacinas ocorridas no campo ou em reservas indígenas sejam analisadas pelas autoridades
Uma força-tarefa entre entidades com o apoio do Ministério da Justiça vai possibilitar que pelo menos 57 casos de massacres em áreas rurais, incluindo reservas indígenas, sejam analisados pelas autoridades. São episódios envolvendo disputa de terra que deixaram 293 mortos por 11 estados do Brasil, entre 1985 e 2023. A iniciativa contrasta com a resistência do governo em retomar os trabalhos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que apurava crimes cometidos durante a ditadura e foi encerrada durante o governo de Jair Bolsonaro.
Os trabalhos sobre os massacres rurais — episódios com três ou mais óbitos — ocorrem em parceria com a Universidade de Brasília (UnB) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), além da Secretaria de Acesso à Justiça (Saju), subordinada ao MJSP. Embora inquéritos tenham sido abertos em diferentes instâncias, parte dos assassinatos ainda permanece com autoria desconhecida e sem punição.
O projeto, chamado de “Memórias dos Massacres no Campo”, começou em 2020. A nova fase da pesquisa, com participação do governo federal, se estenderá por dois anos e terá um investimento de R$ 2,1 milhões por parte do MJSP, conforme convênio assinado no fim de janeiro.
Amazônia: área sensível
O coordenador da CPT Ronilson Costa afirma que levantamentos já feitos pelo projeto apontam para casos de omissão do Estado na apuração de mortes no campo e uma grande vulnerabilidade das comunidades tradicionais, que incluem indígenas, ribeirinhos e quilombolas, além dos pequenos agricultores e extrativistas. Segundo ele, já é possível afirmar que 60% dos conflitos no campo estão na região amazônica, considerada a área mais suscetível a confrontos, onde agem grileiros, garimpeiros e fazendeiros supostamente donos de terras que, segundo a CPT, são conseguidas de modo ilegal. Os garimpos ilegais também se configuram uma ameaça.
— Com a pesquisa será possível resgatar casos além dos que ficaram conhecidos no país, como os assassinatos dos ambientalistas Chico Mendes e Dorothy Stang e os massacres de Corumbiara (RO) e Eldorado dos Carajás (PA). Será um trabalho de resgate histórico, possibilitando que as informações fiquem disponíveis para a população, e que permitirá a retomada de investigações sobre as mortes — pontua o pesquisador Alexandre Bernardino Costa, doutor em Direito Constitucional e coordenador do projeto na UnB, lembrando que os conflitos de terra mudaram de perfil ao longo das últimas quatro décadas.
O massacre de Corumbiara é um dos mais emblemáticos da história do país. Tema de documentário e livro, o episódio ocorreu na antiga Fazenda Santa Elina, na madrugada de 9 de agosto de 1995, quando morreram 12 pessoas, incluindo uma criança, e outras 55 ficaram feridas em um embate entre policiais e posseiros.
Massacre de Corumbiara: caso com 12 mortos e 55 feridos está entre os que poderão ser revisitados pelo trabalho com apoio do Ministério da Justiça — Foto: Arquivo/10.8.1995
A fazenda havia sido ocupada por trabalhadores rurais no dia 15 de julho daquele ano. Ao todo, cerca de 2.300 camponeses estavam no acampamento no dia da reintegração de posse, que mobilizou fazendeiros, a polícia e pistoleiros contratados como seguranças. Após a ocupação policial, além das mortes, 355 assentados foram presos por resistência. Houve ainda um grupo de desaparecidos após o massacre, total que até hoje é incerto, bem como o número real de mortos — um dos pontos que podem ser esclarecidos com as novas apurações.
— Há demora do Estado em agir para evitar episódios de violência no campo e na resposta a casos de conflitos. As investigações, quando ocorrem, andam em ritmo lento — lamenta Ronilson Costa.
Situação atual
De acordo com levantamento da CPT, o Brasil tem, hoje, 1.050 conflitos no campo. A tensão nessas áreas coloca o país sob risco de novos episódios de violência. Os pontos de tensão agrária envolvem cerca de 182 mil famílias, em todos os estados e no DF. O Norte lidera o ranking de disputa por terras, com 420 conflitos, seguida por Nordeste (324), Centro-Oeste (184), Sul (62) e Sudeste (60).
Costa ressalta que projetos ligados ao campo, que incluem assentamentos, fiscalização e combate de garimpos irregulares e a manutenção de uma rede de proteção a comunidade tradicionais sofreram esvaziamento nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. A crise nos programas envolvem desde a redução de orçamento a falta de funcionários para fiscalização.
Fonte: O GLOBO
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