Em conversa com o GLOBO, Dennis Francis fala sobre a reforma no sistema internacional e sobre a reunião do G20 na organização, em setembro

Na próxima semana, a Assembleia-Geral da ONU realiza encontros, discussões e reflexões sobre a crise climática que já produz impactos sobre nosso presente e, especialmente futuro. A Semana da Sustentabilidade terá como foco os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, previstos para serem concluídos até 2030, e se insere em uma série de eventos dedicados ao clima dentro da organização, incluindo a Cúpula do Futuro, em setembro.

Em entrevista ao GLOBO, o presidente da Assembleia-Geral, Dennis Francis, diplomata de Trinidad e Tobago, detalhou alguns dos encontros dos próximos meses, incluindo uma inédita reunião do G20 marcada para setembro, dentro da ONU e aberta a todos os Estados. Francis opinou ainda sobre outros tópicos cruciais para o futuro da organização, como a regulação da Inteligência Artificial e as discussões sobre reformas no sistema internacional.

Gostaria de começar a conversa falando da reunião do G20 prevista para acontecer na ONU em setembro, e que será aberta a todas as nações. Como o senhor vê essa iniciativa, e se considera que ela poderá incrementar o diálogo não apenas dentro do G20, mas entre outros governos e regiões?

Eu estou bastante animado com a reunião, e como ela se enquadra no trabalho feito pela ONU. Particularmente, a reunião está ligada à conclusão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), cuja implementação está prevista para 2030. Recentemente, recebemos a visita do embaixador Maurício Carvalho Lyrio, o sherpa do Brasil no G20. 

Ele fez uma apresentação à Assembleia-Geral, e o nível de apoio dos países à presidência do Brasil do G20 foi considerável. É compreensível, uma vez que eles confiam na direção tomada pelo G20 sob comando do Brasil, que por sua vez está perfeitamente alinhada com o trabalho da minha presidência da Assembleia-Geral.

Mas de forma mais particular, essa cúpula fortalecerá o comprometimento com os ODS. Por exemplo, o Brasil determinou que uma prioridade seria lidar com a questão da desigualdade no mundo, com o fato de que a diferença de desenvolvimento entre o Norte e o Sul está aumentando. Mas o que significa? Significa atacar a fome e a pobreza no mundo, algo que o Brasil fez internamente com alto nível de sucesso. 

E como você sabe, a pobreza e a fome são áreas centrais onde os ODS estão abaixo do esperado, então há uma sintonia entre o que o Brasil busca e o trabalho que fazemos na ONU. O embaixador Lyrio compartilhou conosco que o Brasil quer estabelecer uma coalizão global para combater a fome e a pobreza, e que essa coalizão estará aberta a todos os países, então imagino que muitos vão se unir à iniciativa. E penso que as perspectivas apontam para uma colaboração ampliada com o Brasil, inclusive no trabalho para atingir os ODS.

Presidente da Assembleia-Geral da ONU, Dennis Francis — Foto: ONU / Divulgação

O senhor mencionou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e essa discussão ocorre em meio a um outro debate, relacionado à reforma do sistema de governança internacional. Esses são dois temas interligados?

O tema das reformas dos sistemas tem destaque na agenda da ONU porque, para atingir o desenvolvimento, precisamos observar os sistemas de tomada de decisões em torno do financiamento de iniciativas. Uma sugestão que a ONU e outros atores vêm fazendo gira em torno da necessidade de reformar a arquitetura financeira internacional. 

O Brasil afirmou que essa também é uma prioridade, então há uma certa sinergia entre o trabalho que estamos fazendo na ONU, e parece ser uma situação em que todos saem ganhando, e que nos deixa animados, uma vez que acreditamos que isso poderá trazer bons dividendos para o desenvolvimento e para as pessoas de todo o mundo.

Queria entrar em um outro tema da agenda brasileira do G20, a questão climática. A Assembleia-Geral realizará, entre os dias 15 e 19 de abril, a Semana da Sustentabilidade, em meio à pressão para ações relacionadas à justiça climática, como para que países e atores que seguem poluindo o planeta sejam forçados a pagar reparações. Há espaço para a aprovação de novas resoluções e normas nesse sentido, dentro do âmbito da ONU?

Sim, com certeza há, porque você sabe que há problemas crônicos de financiamento para ações climáticas, que precisam ser resolvidos urgentemente. Por exemplo, no ano passado, nos Emirados Árabes Unidos [durante a COP28], nós celebramos o estabelecimento de um mecanismo de perdas e danos. Isso foi resultado de duras negociações, que se estenderam por vários anos, para que o tema fosse incluído na agenda das conversas sobre as mudanças climáticas, e vários países se comprometeram a contribuir para esse fundo, mas em valores abaixo do que se esperava. 

Precisamos de uma melhora significativa no financiamento para o mecanismo de perdas e danos, mas também precisamos ver um aumento nos valores alocados a ações de adaptação climática. Apenas 2% dos fundos relacionados às mudanças climáticas estão sendo destinados a ações de adaptação. Embora seja importante lidar com a mitigação, a sobrevivência a longo prazo de muitos países, incluindo os mais vulneráveis, depende de investimentos em adaptação. 

Isso permitirá que essas nações lidem com as mudanças climáticas de forma mais eficaz, incluindo os efeitos dessas alterações. A chamada “moralidade climática” estabelece que deve haver aumentos importantes no financiamento para ajudar aqueles que estão mais vulneráveis, e aqueles que não causaram as mudanças no clima.

Existe também uma relação entre as dívidas desses países e ações para o clima?

Os países menos desenvolvidos, e os países em desenvolvimento sem acesso ao litoral têm grandes dívidas internas e externas. Uma vez que eles pagam essas dívidas, eles ficam sem recursos disponíveis para investir em ações para o clima ou para financiar outras ações de desenvolvimento, já que o pagamento dos compromissos exige uma grande parcela dos recursos disponíveis. 

Com isso, eles se veem incapazes de realizar as reformas necessárias para incrementar suas capacidades de enfrentar as mudanças climáticas. Diante desse cenário, o apoio internacional é absolutamente necessário para empoderar esses países para enfrentar um problema que não foi criado por eles.

No dia 22 de março, a Assembleia-Geral aprovou a primeira resolução sobre o uso de Inteligência Artificial, um tópico de crescente importância em fóruns internacionais e que será discutido na Cúpula do Futuro, na sede da ONU, em setembro. Esse é um outro tema sobre o qual precisamos avançar em termos de normas e regras?

Essa tecnologia traz riscos, não há dúvidas quanto a isso, mas também oferece a perspectiva de benefícios significativos para a sociedade e a civilização. Então o que precisamos fazer é garantir que as regras necessárias estejam em vigor, para minimizar esses riscos. Riscos esses que podem ser pessoais, institucionais e aqueles relacionados a impactos mais amplos sobre a sociedade. 

Um exemplo são as redes sociais, onde há uma tendência crescente de campanhas de desinformação. Isso pode fazer com que as pessoas mudem seus comportamentos, e tem o potencial de minar o tecido social. Por isso, garantir que regras estejam em vigor para proteger as pessoas e para estabelecer uma certa zona de defesa é muito importante. 

Vale apontar que essa resolução foi aprovada por unanimidade, e isso não é algo comum nas Nações Unidas, e o fato de ter ocorrido dessa forma aponta para o interesse da comunidade internacional de se beneficiar do que a Inteligência Artificial pode oferecer, mas fazê-lo de uma maneira pragmática e consciente, reconhecendo os riscos e potenciais ameaças que vêm com ela. A questão agora gira em torno de desenvolver sistemas de governança que minimizem esses riscos, e acho que a resolução avança bastante nesse aspecto. 

A tecnologia avança muito rápido hoje, e é extremamente difícil lidar com todos os aspectos dos riscos, mas o texto inova ao criar barreiras e controles destinados a confortar a maior parte da comunidade internacional, para que possamos usar a IA na resolução de problemas reais de nossas sociedades.

O senhor preside aquela que é considerada a mais democrática instituição do Sistema ONU, a Assembleia-Geral, onde cada país tem direito a um voto, e onde todos os votos têm o mesmo peso. O senhor acredita que uma reforma que garanta mais voz a mais países na ONU passa pelo empoderamento da Assembleia-Geral?

O sistema que temos hoje foi construído após 1945 e deve continuar. A Carta da ONU segue sendo a Carta da ONU, e nas discussões que temos e continuaremos a ter não há menções a emendas ao texto. O debate é sobre como tornar a Carta mais eficaz, e no futuro próximos continuaremos a ter um Conselho de Segurança e uma Assembleia-Geral, assim como teremos uma infraestrutura econômica. 

Contudo, para que o sistema funcione bem, devemos ter um Conselho de Segurança e uma Assembleia-Geral igualmente robustos, uma vez que a Assembleia é uma espécie de braço legislativo da ONU, onde as regras e políticas são desenvolvidas, com o consentimento e o engajamento de todos. Então nós precisamos ter um Conselho de Segurança forte, e há ações sendo feitas nesse sentido agora mesmo. Contudo, as negociações formais ainda não começaram, e gostaria de dizer às pessoas que a reforma do Conselho de Segurança é um processo, não um evento. 

Também estamos discutindo a revitalização da Assembleia Geral, uma vez que há situações no Conselho de Seguranças em que evidências mostram uma crescente incapacidade de lidar de maneira satisfatória com questões de paz e segurança.

O papel da Assembleia-Geral, nesse aspecto, foi fortalecido até certo ponto, mas é claro que só podemos fazer o que está previsto no conjunto de regras. Então posso dizer que a Assembleia está executando seu mandato, e fazendo isso de maneira legal, porque as regras nos permitem considerar, discutir e tomar decisões de paz e segurança internacional em certas circunstâncias. Esse sistema deve permanecer em vigor, e pode até ser fortalecido. 

Mas qual será a configuração futura [do Sistema ONU]? A maior parte dos membros da organização gostaria de ver uma Assembleia-Geral mais eficaz, e certamente ver um Conselho de Segurança mais ágil e funcional, e que consiga executar seu mandato de forma competente em temas de paz e segurança. Após a Cúpula do Futuro, em setembro e outubro, vamos emitir um documento importante chamado “Pacto para o Futuro”, que deve ser um documento definidor para o futuro das Nações Unidas.


Fonte: O GLOBO