Críticos afirmam que legislação alimenta a discriminação e está esfriando o mercado imobiliário local, que depende de investimentos chineses
Mas as coisas mudaram radicalmente. No último minuto, a empresa responsável pela escritura levantou preocupações sobre um pequeno posto avançado da Guarda Costeira dos EUA perto de South Beach, a alguns quilômetros de distância. Segundo a empresa, sua compra poderia entrar em conflito com uma nova lei da Flórida que proíbe muitos cidadãos chineses de adquirir propriedades no estado, especialmente perto de instalações militares, aeroportos ou refinarias.
De acordo com a lei, Li poderia pegar pena de prisão e os vendedores e agentes imobiliários poderiam ser responsabilizados. O negócio fracassou.
— Toda a experiência foi muito dolorosa e cansativa — disse Li em uma entrevista recente em um café em Miami, onde ela ainda está morando de aluguel. — Sinto que, como alguém que viveu e trabalhou neste país por muitos anos e como contribuinte legal, no mínimo eu deveria ter a possibilidade de comprar uma casa onde eu possa morar.
Mais de três dúzias de estados promulgaram ou estão considerando leis semelhantes que restringem a compra de terras por cidadãos e empresas chinesas, argumentando que essas transações são uma ameaça crescente à segurança nacional e que o governo federal não conseguiu impedir a influência do Partido Comunista Chinês (PCC) nos Estados Unidos.
A lei da Flórida, que entrou em vigor em julho, está entre as mais abrangentes. Além de impedir que entidades chinesas comprem terras agrícolas, ela efetivamente proíbe que a maioria dos indivíduos chineses sem um green card compre propriedades residenciais. O governador Ron DeSantis assinou a medida pouco antes de lançar sua campanha presidencial, alertando os eleitores de que a China representava a maior ameaça aos Estados Unidos.
— Hoje, a Flórida deixa bem claro: não queremos o PCC no Estado Ensolarado — declarou DeSantis no ano passado.
Efeito inibidor
Em mais de uma dúzia de entrevistas, os residentes chineses na Flórida expressaram suas frustrações pelo fato de terem sido afastados do sonho americano definitivo. Outros residentes de ascendência chinesa disseram que enfrentaram discriminação quando tentaram comprar uma casa. Alguns afirmaram que viviam com medo de violar inadvertidamente a lei.
Grupos de direitos civis e asiático-americanos não têm conhecimento de que alguém tenha sido acusado de violar a lei. Mas alguns descendentes de chineses disseram que sentem a intensificação do sentimento anti-China. Atualmente, a lei está sendo contestada em um tribunal federal.
— Nunca senti qualquer discriminação aqui antes dessa lei — comentou Jin Bian, um desenvolvedor de software chinês que trabalha em Tampa e está entre os que agora são impedidos de comprar imóveis. — Mas agora estou me perguntando se preciso sair da Flórida.
A lei também teve um aparente efeito inibidor no setor imobiliário, uma parte importante da economia do estado. As incorporadoras geralmente dependem de investidores chineses para ajudar a construir projetos na Flórida, e a lei parece ter impedido esse financiamento, o que provocou a reação de um importante grupo de lobby do setor imobiliário.
A legislação faz parte de um pacote mais amplo aprovado pelo Legislativo da Flórida no ano passado, que incluía um projeto de lei restringindo as universidades e faculdades públicas do estado de oferecer cargos de pesquisa a estudantes da China e de outros países. Essa lei também está sendo questionada no tribunal.
— Quanto mais fundo se olha, mais fundo se vê que a China tem buscado clandestinamente a apropriação de terras nos Estados Unidos — declarou o deputado estadual David Borrero, um republicano da área de Miami que foi um dos apoiadores da lei de terras. — Não podemos ter isso em nosso quintal.
Borrero discordou dos críticos que alegam que a lei era discriminatória, afirmando que os “nossos interesses de segurança nacional estão em primeiro lugar”.
O governo chinês tem um histórico de uso de coerção econômica e espionagem para promover seus objetivos geopolíticos e, nos últimos anos, tanto os EUA quanto a China intensificaram os esforços para avançar suas capacidades de espionagem em todo o mundo.
Deputados estaduais estão especialmente preocupados com o investimento chinês em terras agrícolas e territórios próximos a instalações militares, temendo que a China possa estrangular o suprimento de alimentos dos Estados Unidos ou usar a terra como posto de espionagem. Os investidores chineses possuem menos de 1% das terras agrícolas detidas por estrangeiros nos EUA, de acordo com o Departamento de Agricultura americano.
Lei do início do século XX
Especialistas em segurança nacional afirmam que a ameaça específica representada pelo fato de os chineses possuírem imóveis não foi claramente esclarecida.
Holden Triplett, ex-funcionário de contrainteligência do FBI que chefiou os escritórios do órgão na China, disse que os cidadãos chineses têm maior probabilidade de ter laços familiares com a China que poderiam ser usados como arma pelos órgãos de segurança do Estado no país. Por outro lado, proibições categóricas poderiam alienar ainda mais uma comunidade da diáspora chinesa que poderia ser de grande ajuda para os Estados Unidos no caso de um conflito com a China, acrescentou.
— Precisamos ter cuidado com essas leis proibitivas — comentou Triplett, que deixou o FBI em 2020 e foi cofundador da Trenchcoat Advisors, uma consultoria de gerenciamento de riscos. — Vamos trabalhar para descobrir o que está acontecendo e ver se há outra maneira de resolver esse problema.
Grupos de direitos civis e residentes contestaram a lei da Flórida em um tribunal federal, alegando que ela viola a Cláusula de Proteção Igualitária e a Lei de Moradia Justa, e que ela reduz os poderes do governo federal em assuntos estrangeiros.
— Não há evidências de que a posse de casas por chineses prejudique a segurança nacional — disse Ashley Gorski, advogada sênior da União Americana de Liberdades Civis, um dos vários grupos que moveram a ação.
Para Mae Ngai, professora de História e estudos asiático-americanos da Universidade Columbia, a lei da Flórida lembra as leis de terras estrangeiras do início do século 20, que efetivamente proibiam os imigrantes asiáticos de comprar terras agrícolas e, em alguns casos, imóveis em muitos estados.
— Eles viam os asiáticos como uma invasão estrangeira que iria tomar conta dos Estados Unidos — acrescentou Ngai.
Depois que o projeto de lei foi apresentado no ano passado, a comunidade chinesa na Flórida começou a organizar freneticamente comícios e visitas de porta em porta.
No Texas, a oposição da comunidade asiático-americana, incluindo um ex-deputado republicano de ascendência chinesa, ajudou a reverter algumas disposições de um projeto de lei semelhante. Mas na Flórida, a comunidade chinesa representa apenas 0,6% da população. Muitos são imigrantes de primeira geração que se mudaram para o estado para estudar ou trabalhar em universidades. E há muito poucos políticos asiático-americanos no Legislativo. Então a dissidência dos ativistas da Flórida quase não foi notada.
Os lobistas do proeminente fundo de cobertura Citadel, que foi transferido de Chicago para Miami em 2022 e emprega um grande número de cidadãos chineses, foram mais eficazes e conseguiram garantir uma isenção para que os chineses com vistos de trabalho válidos pudessem comprar uma residência própria, desde que a propriedade fosse menor que 8 mil metros quadrados e não estivesse a menos de 8 km de uma instalação militar.
Mas a maioria das restrições propostas inicialmente foi mantida e o impacto da lei foi sentido quase que imediatamente.
Evelyn Yang, corretora de imóveis em Palm Beach Gardens, disse que, logo após a lei entrar em vigor, ela fez várias consultas sobre um apartamento em Miami em nome de um cliente chinês que tinha residência permanente. Segundo ela, ficou dias sem receber resposta do vendedor.
— Quando finalmente retornaram minhas ligações, disseram apenas: “Seu comprador pode comprar [o imóvel]? Os chineses estão autorizados a comprar neste momento?" — lembrou Yang. — Eles viram que nossos nomes são chineses e presumiram que não poderíamos comprar.
Fonte: O GLOBO
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