Djidja Cardoso foi achado com sinais de overdose na casa em que vivia com a mãe na semana passada

Porto Velho, Rondônia - Na manhã de 28 de maio, quando o corpo da modelo Dilemar Cardoso Carlos da Silva, a Djidja Cardoso, de 32 anos, foi achado com sinais de overdose na casa em que vivia com a mãe, Cleusimar Cardoso, e o irmão, Ademar Cardoso, no bairro Cidade Nova, em Manaus, a Polícia Civil do Amazonas já investigava, há pelo menos 40 dias, indícios de que havia algo errado no seio daquela família.

Djidja Cardoso era uma celebridade no Amazonas. Durante os anos de 2016 e 2020, foi a sinhazinha do Boi Garantido, uma das estrelas principais do Festival de Parintins. O cenário encontrado na casa, segundo os policiais, era de terror: cheiro de podridão, sujeira e centenas de seringas. No corpo, havia uma série de feridas causadas pelas aplicações.

— Tenho 13 anos como delegado e posso dizer que é a primeira vez que me deparo com uma situação como essa. É assustador. A investigação leva a conclusões tenebrosas. É tudo muito macabro e impactante — comenta o delegado Cícero Túlio, à frente do caso.

Culto à droga

Segundo o inquérito, há cerca de um ano e meio, mãe e filhos criaram uma espécie de seita religiosa, batizada de “Pai, Mãe, Vida”, e passaram a cultuar o uso indiscriminado da ketamina — ou cetamina —, anestésico de uso controlado, restrito a médicos e veterinários e que provoca efeitos alucinógenos. Expandiram o culto à rede de salões de beleza da família, Belle Femme, onde, com a ajuda da gerente Verônica Seixas e dos maquiadores Claudiele Santos e Marlisson Dantas, compravam o produto clandestinamente numa clínica veterinária e obrigavam que mais pessoas se drogassem.

Mãe, filho e os três funcionários suspeitos de participação no esquema estão presos. Eles responderão por uma série de crimes, como tráfico de drogas, por colocar em perigo a saúde ou a vida do outro, charlatanismo, entre outros. Ademar é investigado ainda por crimes de estupro de vulnerável e aborto provocado sem consentimento, após queixas de uma ex-namorada.

As apreensões de cetamina têm crescido nos últimos três anos, de acordo com dados da Polícia Federal. Quatro ações da PF, em 2021, apreenderam 351,47 gramas do medicamento em pó em todo o país. Em 2022, dez ações resultaram em apreensão de 2,45kg. Em 2023, foram 23 operações diferentes, com apreensão de 4,5kg da droga. A maioria, em São Paulo, mas também em Mato Grosso do Sul, Amazonas, Ceará, Rio e Paraná.

Material apreendido na casa onde Djidja Cardoso foi achada morta: família criou uma seita que cultuava a cetamina — Foto: Divulgação / PC-AM

Entre novembro e dezembro do ano passado, a Polícia Civil do Distrito Federal realizou as maiores apreensões de ketamina já registradas pela instituição. Um homem identificado como Flávio Dias Cordeiro, vulgo Rei da Keyla — apelido em referência a um dos nomes dados à droga, Special-K — foi preso, e foram bloqueados com ele mais de R$ 3,5 milhões que teriam sido obtidos com o tráfico ilegal do produto. Teresina e Piauí estariam na rota da droga.

Depois, a Operação My Key Style, com apoio das polícias de SP e do RJ desmantelou uma organização criminosa de tráfico interestadual “em grande escala” de ketamina. Os investigadores do DF descobriram que traficantes montaram um esquema de atuação empresarial voltada a esse mercado clandestino. Uma empresa agropecuária criada em 2021 em São Paulo com uso de documentação falsa comprava cetamina e distribuía para clínicas veterinárias do Rio, Pará, Rio Grande do Sul, municípios paulistas e DF.

— Só no último ano, a empresa adquiriu pelo menos R$ 7 milhões em cetamina e outros medicamentos. Cada ampola era comprada por R$ 90 a R$100 e revendida a traficantes locais por R$ 400 — comentou na ocasião o delegado Rogério Henrique de Oliveira.

Em São Paulo, onde as apreensões de ketamina chamam atenção e a incidência das drogas “K” cresceram em dez vezes entre 2022 e 2023, o delegado Fernando Santiago, do Departamento de Investigações Sobre Narcóticos, explica que a substância é usada por traficantes também para misturar com cocaína e com essas novas maconhas sintéticas. Os desvios costumam envolver clínicas veterinárias, acrescenta.

No caso da ex-sinhazinha, os investigadores acreditam que o vício na ketamina possa ter começado com o irmão dela, Ademar, que morou em Londres, no Reino Unido, onde teria sido apresentado à droga. No país britânico, uma reportagem da BBC mostrou recentemente que a Special-K virou questão de saúde pública. Nos EUA, a mesma substância provocou a morte do astro de “Friends”, Matthew Perry.

Vilson Benayon, advogado de Cleusimar, Ademar e da gerente do salão defende que mãe e filho sejam diagnosticados como dependentes químicos possam ser internados, não presos:

— A Djidja morreu de overdose e eles também estavam prestes a morrer dessa forma. A prisão deles foi um resgate. Eles não têm noção do tempo, não sabem há quanto tempo estão presos ou quando a Djidja morreu.

A cetamina pura como droga é usada, principalmente, por jovens de classe média em festas de música eletrônica e baladas LGBTQIAP+, explica o médico psiquiatra Jorge Jaber, responsável por uma clínica de reabilitação no Rio, filiada à World Federation for Mental Health (WFMH). O uso acontece normalmente por injeção ou via nasal.

— Essa droga começou a circular no Brasil por volta dos anos 1990, quando explodiram as festas rave. Hoje, já virou droga popular. Já é comum recebermos, por semana, um ou dois pacientes viciados em ketamina — conta.

'Quase morte'

O psiquiatra reforça ainda que o medicamento pode ser adquirido apenas por empresas do ramo da medicina ou veterinário, e deve ser usada apenas em ambientes hospitalares. Além de um anestésico muito usado em cavalos, a substância, em concentração muito menor, também trata casos de depressão.

A influenciadora fitness gaúcha Déia Cavalheiro, de 32 anos, se comoveu ao saber do caso de Djidja. Há alguns anos, um namorado apresentou a ketamina a ela, para usarem em raves. Eles se separaram e, com o início da pandemia, ela viu nessa droga uma “saída” para a depressão. Foram quatro anos até conseguir largá-la de vez. Déia perdeu dinheiro, amigos e não conseguiu terminar o curso de Medicina.

— Eu fui parar no hospital várias vezes. Tive algumas experiências de quase morte, uma delas muito assustadora — conta. — Primeiro, eu gostava da sensação de me sentir fora da realidade. Depois, a minha dependência era pela falta da droga no meu organismo, não mais pela sensação. Usava o dia inteiro, desde que acordava, até dormir.

'Crescente desvio', observa governo federal

Procurado pelo GLOBO, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), responsável por regular a circulação da cetamina, esclareceu que, entre os produtos veterinários sujeitos a controle especial, a medicação se destaca. 

Em nota, a pasta afirma que "para coibir o desvio de uso desses produtos, são realizadas fiscalizações de rotina nos estabelecimentos nas quais, se forem constatadas irregularidades, podem ser lavrados autos de infração, interdição do estabelecimento, apreensão de produtos e suspensão do cadastro de médicos veterinários" e que, além disso, "o Mapa realiza operações especiais em conjunto com autoridades policias para desarticulação de organizações criminosas que adquirem produtos à base de cetamina para o desvio de uso como droga recreativa".

O ministério cita a Operação Keyla, realizada em conjunto com Polícias Civis do Distrito Federal, São Paulo e Rio de Janeiro, em dezembro de 2023, quando foram apreendidos 7.674 frascos de produtos de uso veterinário à base de cetamina, que seriam utilizados como droga recreativa.

"Porém, apesar de todas as atividades de controle desempenhadas por este ministério, tem sido observado o crescente desvio de uso de produtos veterinários que contém cetamina como droga de abuso em festas, por exemplo, acrescenta a pasta.

"Estudos científicos relatam que a cetamina tem ação semelhante a outras drogas de abuso, tais como cocaína e anfetamina, com capacidade de induzir sensibilização após a administração repetida. Considerando que a sensibilização está relacionada à dependência causada por estas drogas, estudos demonstraram que o uso repetido da cetamina pode, de fato, levar a um padrão compulsivo de seu uso, mesmo após a administração de baixas doses. Desta forma, ocorrendo ou não a dependência após o uso repetido desta substância, os dados apresentados mostram alterações comportamentais e psicoativas que podem causar prejuízos aos usuários e à sociedade", diz o ministério. "Usuários de cetamina como droga recreativa também podem desenvolver síndrome clínica, que compreende dores na bexiga, obstrução ureteral, necrose papilar e disfunção hepática, agravando os riscos à saúde pública desse uso indevido".

A Anvisa, por sua vez, afirma que a dispensação dos medicamentos de uso humano contendo as substâncias cetamina e escetamina, é bastante restrita. "Somente é permitido o uso em ambiente hospitalar, não podendo ser dispensados em farmácias ou drogarias".


Fonte: O GLOBO