Em entrevista ao GLOBO, pesquisadora defende que, sem ajuste na relação da gestão Lula com o Legislativo, não é possível decretar o fim do presidencialismo de coalizão

O apetite do Congresso por fatias do orçamento público aumentou, mas a compreensão de como isso afeta o Executivo está nublada devido a equívocos sucessivos na articulação política do governo Lula. É o que argumenta, em entrevista ao GLOBO, a cientista política Beatriz Rey. Hoje pesquisadora na Universidade de Lisboa, Rey lança neste mês o livro “MyNews Explica: Congresso Brasileiro” (Almedina Brasil).

A senhora tem criticado o que chama de articulação “fragmentada” do governo Lula com o Congresso. Qual é o erro desse formato?

Há diversas frentes de articulação, da Casa Civil à Fazenda. Em tese o articulador principal é o (ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre) Padilha, que sequer conversa com o presidente da Câmara, além de ser percebido como algo centrado no PT. Passa uma mensagem aos parlamentares de que não tem ninguém no controle.

Havia a sensação de blindagem da pauta econômica. Até isso está ameaçado?

A devolução da medida provisória do PIS/Cofins pelo Senado é um exemplo de omissão. Não dá para o (ministro da Fazenda, Fernando) Haddad enviar uma MP que não tenha sido minimamente acordada. Temos um Congresso fortalecido e que pende muito à direita. Parlamentar não quer mais ser pego de surpresa.

Cientista política Beatriz Rey diz que emendas impositivas dificultam articulação, mas também vê problemas na formatação do governo Lula — Foto: Divulgação

Em governos anteriores, Lula também recorreu à distribuição de ministérios para partidos, mas hoje isso não parece gerar base sólida. O presidencialismo de coalizão se esgotou?

Tenho dificuldade de avaliar com o atual parâmetro de articulação, em que parece que o governo Lula simplesmente joga a toalha. Entendo que o governo não tem capital político para determinadas manobras no Congresso, mas não quer dizer que precise perder de W.O. em sucessivas áreas de política pública, da Segurança ao PL Antiaborto. Também pesa hoje que Lula pareça menos disposto a entrar na articulação política do que em outros mandatos.

Mesmo com uma articulação melhor, o fato de o Congresso vir avançando, desde 2015, com a fatia de emendas que o Executivo é obrigado a pagar já não compromete por si só a capacidade de o governo formar uma base sólida?

Sem dúvida, o governo perdeu uma parte das ferramentas que tinha para construir essa base. Não acho que o problema das emendas seja o montante, mas a sensação é que a cada ciclo eleitoral vem uma ideia mirabolante para dar mais poder aos parlamentares. Além de discutir o quanto do orçamento é abocanhado pelas emendas, é preciso começar pela transparência. Houve uma falha grande do Congresso com o “orçamento secreto”, e as “emendas Pix” também são um absurdo, porque não se sabe o que se faz com esse gasto.

O que o governo poderia fazer para o apetite do Congresso por decidir a aplicação do gasto se tornar mais funcional?

Outro problema hoje é que o Tribunal de Contas da União (TCU) não consegue fiscalizar o gasto na ponta, porque o governo não compila dados de execução das emendas. O Executivo não parece estar com força para essa conversa, mas seria preciso repensar o processo de formulação delas. O caminho que defendo, e usado nos Estados Unidos, é que subcomissões temáticas dentro da Comissão Mista de Orçamento façam uma análise das emendas.

Outro caminho, proposto pelos assessores do Ministério do Planejamento Paulo Bijos e pelo Hélio Tollini, é que cada comissão temática do Congresso tenha um braço para tratar disso. A ideia é que, para além de funcionar como conexão do parlamentar com seu eleitor, as emendas precisam ser integradas com o que se pensa para o país como um todo.

Quando o STF extinguiu o orçamento secreto, viu-se uma chance para o governo Lula restabelecer os parâmetros de relação com o Congresso. Essa chance foi desperdiçada?

O governo estava limitado, mas há outra janela para tentar liderar e não ser liderado, que é a eleição à presidência da Câmara. O que vemos em casos como o PL Antiaborto é Lira tentando se aproximar cada vez mais da bancada evangélica para fazer seu sucessor, que não é algo simples. Para o governo, não dá para bancada temática ser o canal principal de articulação, mas sim entender que elas se estruturaram e operam dentro dos partidos.


Fonte: O GLOBO