'Pode ter um efeito tremendo na criminalidade organizada', afirma subprocurador-geral da República sobre possíveis restrições às colaborações premiadas

Na mira da Câmara dos Deputados, a colaboração premiada de presos já foi usada como instrumento para levar à cadeia suspeitos de tráfico e integrantes de milícia, ajudou a revelar desvios de policiais e teve papel crucial na conclusão de investigações sobre homicídios e casos de corrupção, entre outros crimes. Anteontem, o plenário acelerou o andamento do projeto que proíbe a assinatura de acordos de delação com quem esteja na cadeia. O requerimento de urgência foi aprovado em votação simbólica, ou seja, sem que os deputados expusessem os votos.

O assunto estava na gaveta da Casa há oito anos, antes de vir novamente à tona com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e de um amplo grupo que vai de governistas à oposição, passando pelo Centrão. A tendência é que o mérito da proposta seja analisado na semana que vem. Caso avance, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), indicou ontem que dará outro ritmo ao assunto:

— Devemos ter cautela em temas de matéria penal. Temos que evitar legislar pautados pela emoção ou circunstância de momento.

Na semana passada, entidades de procuradores e delegados criticaram a proposta por criar insegurança jurídica.

— Pode ter um efeito tremendo na criminalidade organizada, que é um problema nacional e que recrudesce a cada dia. Uma forma eficaz de descobrir, desarmar e desmontar a organização criminosa é justamente a delação. Se ela desaparece do rol de instrumentos de enfrentamento da criminalidade, é preciso que os Poderes questionem a validade dessa medida — afirma o subprocurador-geral da República Alexandre Camanho, coordenador da Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal (MPF).

Do PCC à Lava-Jato

Juristas apontam que a norma, se aprovada, não teria potencial de anular delações premiadas já formalizadas. Oposicionistas vinham ventilando que o texto poderia ser um caminho para anular eventuais acusações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro a partir dos depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid, seu ex-ajudante de ordens.

Caso o texto estivesse em vigor no curso das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, poderia inviabilizar a resolução. Ao incriminar definitivamente Ronnie Lessa, a delação do ex-policial militar Élcio Queiroz, que dirigia o carro usado no crime, foi essencial para que Lessa, apontado como o autor, também resolvesse colaborar. Ambos prestaram os depoimentos enquanto estavam presos e seguem detidos.

Lessa, por sua vez, apontou como mandantes os irmãos Chiquinho e Domingos Brazão e revelou o envolvimento do delegado Rivaldo Barbosa — todos presos preventivamente. Os citados já foram denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Supremo Tribunal Federal (STF), que marcou o julgamento na Primeira Turma da Corte para terça-feira.

Alguns casos são emblemáticos. Uma investigação em 2017, também no Rio, resultou em 96 mandados de prisão contra policiais militares após um traficante, que havia sido preso, firmar acordo de delação. Na época, a investigação apontou que os PMs atuavam em auxílio aos bandidos mediante pagamento de propina, além de crimes como sequestros.

Três anos depois, em Itaboraí, na Baixada Fluminense, milicianos firmaram delação e forneceram informações que a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio usaram para fazer novas prisões de integrantes do bando e desvendar homicídios. Como revelou à época o jornal Extra, um comerciante que organizava festas para o tráfico foi assassinado na frente de familiares após paramilitares apostarem quem seria responsável pelo homicídio.

Outro caso envolve um investigado apontado como piloto do PCC. Preso em 2018 por suspeita de envolvimento na morte de traficantes, ele firmou um acordo de delação premiada que ajudou a Polícia Federal a desvendar em 2021 o “Banco do Crime”, esquema de lavagem de dinheiro da maior facção criminosa do país. Ele acabou morto no ano passado.

Foi também graças a um delator preso que a Polícia Federal obteve mais informações sobre um esquema de tráfico internacional de cocaína pelo Porto de Paranaguá, no litoral do Paraná. Ele foi preso no fim de 2020 e, após firmar um acordo de colaboração premiada, contou à PF como se dava a ação supostamente chefiada por um ex-policial militar que ficou conhecido como “Pablo Escobar brasileiro” e que hoje está preso na Bélgica.

Dificuldade de provas

Professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), Helena Lobo reforça que muitas delações são firmadas em investigações que tratam de facções como o PCC e o Comando Vermelho:

— Haverá dificuldade de obtenção de prova, com prejuízo grande às investigações dessas organizações criminosas. Proibir a delação de quem está preso é um equívoco. O problema não é fazer colaboração de preso, e sim o abuso da prisão preventiva.

Procuradores e delegados também usaram informações de delações para avançar em esquemas de corrupção, como na Lava-Jato. Logo na largada da operação, depoimentos do doleiro Alberto Yousseff e do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, que estavam detidos em Curitiba, abriram caminhos que levaram a prisões e condenações de políticos e empresários.

Professora de direito penal da FGV São Paulo, Heloisa Estellita afirma que os ajustes que deveriam ser feitos na delação premiada já ocorreram na reforma da legislação penal, em 2019:

— É claro que uma prisão feita para obrigar o preso a delatar poderia comprometer a voluntariedade da parte do delator, mas não existe fundamento na legislação que permita prender alguém para delatar. Se isso ocorrer, o tribunal tem que soltar.


Fonte: O GLOBO