Caso seja aprovado, parlamentares entendem que o texto poderia beneficiar o ex-presidente, que está na mira da Justiça e é implicado pela colaboração do ex-ajudante de ordens Mauro Cid

Porto Velho, Rondônia - O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), líderes do Centrão e a bancada do PL, partido de Jair Bolsonaro, costuram a votação, a toque de caixa, de um projeto que proíbe delações premiadas de réus presos. Caso seja aprovado, parlamentares entendem que o texto poderia beneficiar o ex-presidente, que está na mira da Justiça e é implicado pela colaboração do ex-ajudante de ordens Mauro Cid. 

Outras operações políticas em curso visam livrar o ex-mandatário, como a tentativa do PL em vincular o apoio à sucessão da Câmara a uma “anistia”, além de uma PEC para salvar alvos do 8/1 que tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), cujo relator foi definido nesta semana.

Na próxima terça-feira, os deputados podem votar um requerimento de urgência da proposta que trata das delações. Essa foi a forma encontrada por apoiadores de Bolsonaro para pular etapas do debate e ressuscitar um texto que estava engavetado há oito anos. Caso seja aprovada, a urgência libera o texto para ser deliberado a qualquer momento. Especialistas criticam a medida.

Tramitação — Foto: Editoria de Arte

Projeto antigo


A manobra de Lira e aliados foi revelada pelo colunista Bernardo Mello Franco. Surpreendidos pela movimentação, petistas — que defendiam o mesmo projeto há oito anos —, se dizem constrangidos por ter que se posicionar em assunto resgatado, em tese, para beneficiar o principal nome da oposição.

Em 2016, o então deputado Wadih Damous (PT-RJ), hoje Secretário Nacional de Defesa do Consumidor, apresentou o texto. Sem o apoio do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o projeto foi rejeitado pela Comissão de Segurança Pública da Casa naquele ano e remetido à CCJ. O texto ficou engavetado até a última semana, quando o deputado Luciano Amaral (PV-AL) solicitou o requerimento de urgência através de um acordo entre os líderes.

Damous vê um “motivo oportunista” para resgatar o assunto. O texto impõe como condição para a homologação de delações a necessidade de o acusado estar respondendo em liberdade ao processo ou investigação. Também estabelece que nenhuma denúncia poderá ter como fundamento apenas as declarações do delator, além de punir com prisão a divulgação de depoimentos de delatores.

— Vejo um uso capcioso do projeto, conveniente neste momento. É pura manipulação oportunista. Eu sigo sustentando que delação não é prova, mas eu não entendo a pressa de votar com urgência algo que ficou paralisado por anos. Se o objetivo é beneficiar Bolsonaro com esta aprovação, darão com os burros n’água, já que a lei não retroage, não vale para delações já feitas — diz Damous.

Apesar de filiado ao PV, partido da base do governo e da federação do PT, Luciano Amaral, que ressuscitou o tema, acumula votações em alinhamento com o bolsonarismo e não segue as orientações do Planalto. Ele votou, por exemplo, pelo marco temporal, no ano passado, e foi favorável à soltura do deputado Chiquinho Brazão, acusado de arquitetar o assassinato da vereadora Marielle Franco. A atuação dele fez com que o partido o colocasse na mira de um processo de expulsão.

O líder do PL na Câmara, Altineu Côrtes (RJ), se diz favorável à matéria:

— Ninguém aguenta mais delações de réus presos. É assim desde a época do PT. O PL será favorável, sim.

No Congresso, a operação política para livrar o ex-presidente, da qual o texto faz parte, também está ligada diretamente à sucessão de Lira em 2025. Sem esconder, parlamentares e a direção do PL tentam condicionar o apoio de seus deputados à adesão a uma espécie de anistia a presos pelo 8 de Janeiro e ao próprio Bolsonaro. Ao GLOBO, no mês passado, o presidente da sigla, Valdemar Costa Neto, foi enfático que “vai colocar isso na mesa”, na Câmara e no Senado. Nesta frente, há proposta que pode ser analisada em breve pela CCJ da Câmara.

Com aval de Lira, além do deputado do PV e de Côrtes, assinaram o requerimento de urgência os líderes Aureo Ribeiro (SD-RJ), Elmar Nascimento (União-BA), Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL) e Romero Rodrigues (Podemos-PB). Elmar e Isnaldo são postulantes à sucessão de Lira e têm se desdobrado para angariar apoio na oposição.

Na terça-feira, petistas estavam surpresos com a manobra. Em conversa no cafezinho da Câmara, Lira ironizou o apelo dos petistas contra o avanço do texto:

— Vocês eram a favor disso… agora são contra?

Procurado, o líder do União Brasil nega que a urgência tenha o objetivo de beneficiar Bolsonaro.

— Quando o projeto foi apresentado, em 2016, diziam que era pra beneficiar o Lula. Agora que a Câmara quer debater e votar, dizem que é para beneficiar o Bolsonaro. Não nos cabe fulanizar a política, ficar personificando as pautas. Precisamos fazer um debate sério.

Especialistas criticam o entendimento de parlamentares de que delações já firmadas possam ser afetadas, como a de Cid.

— A nova lei processual afeta o processo ou a investigação no estado em que ele se encontra, o que significa dizer que os atos de investigação, os atos probatórios produzidos até então são válidos — explica André Perecmanis, professor de Direito Penal da PUC-Rio.

Para Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da FGV SP, o projeto pode significar, inclusive, um retrocesso no combate ao crime organizado:

— É preciso destacar que essa lei pode desmantelar um processo que foi muito positivo para o Brasil, sobretudo porque irá beneficiar aqueles que participam de organizações criminosas, incluindo corrupção.

Freio na Lava-Jato

Em 2016, ao redigi-lo, Damous tentava frear a Operação Lava Jato. Agora, a bancada petista da Câmara se vê diante de um dilema. Parlamentares confessam ser um incômodo votar contra uma pauta defendida pelo partido na última década. Mas não querem abrir brecha para favorecer Bolsonaro. A proposta também poderia favorecer os presos Chiquinho e Domingos Brazão, irmãos apontados por Ronie Lessa, um delator preso, como mandantes do assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco.

Um deputado petista afirma reservadamente que a bancada não terá como votar contra o texto, apesar do entendimento de que Bolsonaro possa ser contemplado pela anulação da delação de Cid. Além de relatar fatos relacionados ao suposto desvio de joias do acervo presidencial e fraudes em cartão de vacina, o militar trata em sua colaboração sobre a existência de um plano de golpe de Estado para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.

O parlamentar petista argumenta que seria incoerente esquecer o momento em que Lula e outros aliados estavam sob o cerco de investigações sobre desvios da Petrobras e foram alvos de delatores pela operação. Petistas avaliam ainda que houve, mais uma vez, falta de articulação do governo.


Fonte: O GLOBO