Reaquecimento da demanda por viagens aéreas em meio ao atraso nas encomendas de novas aeronaves ajuda a revitalizar polo industrial de reparos, que vai do Galeão à Serra
A retomada da demanda global por viagens aéreas após a pandemia também aqueceu a busca por manutenção de aviões, ajudando a recuperar o tradicional polo desses serviços instalado no Rio. A recuperação motiva investimentos da americana GE Aerospace, da Drayton Aerospace, fundada na China, da brasileira Comaf e da francesa Safran.
A mão de obra qualificada e a demanda das operações de apoio à exploração de petróleo e gás em alto-mar, no segmento de helicópteros, é uma das principais explicações para os investimentos no Rio, dizem executivos e especialistas.
Segundo projeção da consultoria Oliver Wyman, o setor de manutenção de aeronaves — conhecido, no jargão da aviação, pela sigla em inglês MRO — deve faturar US$ 104 bilhões este ano em todo o mundo, alta de 2,8% sobre 2023.
Se confirmada, a estimativa levará o setor a um novo recorde, com receita 1% acima do registrado no início de 2020, antes da pandemia.
No curto prazo, os atrasos nas entregas de novas aeronaves, ainda um efeito colateral das restrições nas cadeias industriais causadas pela Covid-19, têm aumentado a demanda global por manutenção, dizem executivos. Isso porque aviões mais antigos estão ficando mais tempo que o previsto em operação, com a demora na entrega dos novos.
Na semana passada, por exemplo, a gigante europeia Airbus reduziu de 800 para 770 as entregas de novos aviões comerciais neste ano por causa da escassez de motores e componentes. A rival americana Boeing, entre outras crises, vive problema similar.
GE Aerospace investe R$ 430 milhões
No longo prazo, o atraso no crescimento da frota global joga contra o crescimento dos serviços de manutenção, segundo relatório da Oliver Wyman, mas o cenário atual marcado pela alta demanda pós-pandemia encorajou a GE Aerospace, divisão aeronáutica da gigante americana, a tirar da gaveta o plano de investir R$ 430 milhões para ampliar a oficina de turbinas em Três Rios, no Estado do Rio.
Inaugurado em 2018, com investimento anterior de US$ 50 milhões (R$ 279 milhões, no câmbio atual), o centro opera de forma combinada com três unidades originais, em Petrópolis, que seguem funcionando.
Juntas, e somadas a uma unidade no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio, formam a principal oficina de revisão de motores aeronáuticos comerciais da gigante americana no mundo, diz Luiz Froes, diretor executivo regional e vice-presidente de Relações Governamentais da GE Aerospace no Brasil.
— A grande maioria das oficinas não tem a nossa capacidade instalada. Podemos fazer na Celma 90% dos reparos requeridos (conforme o tipo de motor) — diz Froes, usando o nome original do conjunto industrial criado nos anos 1950, que já pertenceu à antiga Pan-Air, foi estatizado e, nos anos 1990, foi adquirido pela GE.
Funcionário da GE em Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, trabalha em manutenção de turbina de avião: mercado aquecido — Foto: Gabriel de Paiva
Atualmente, as oficinas da GE no Rio, com cerca de 3,5 mil empregados, têm capacidade de reparar 500 motores por ano. Com a expansão, a ser concluída no segundo trimestre de 2025, o plano é chegar, gradualmente, a 800 motores por ano, até 2030, diz Froes:
— Há uma demanda latente. Muitos dos motores que vendemos alguns anos atrás estão com necessidade de manutenção mais robusta agora, em 2025 e 2026.
Oficina da Drayton foi inagurada em maio
A demanda crescente também está por trás da decisão da Drayton de investir R$ 80 milhões numa oficina para trens de pouso no polo de manutenção do Aeroporto Internacional do Galeão. Quando estiver completa, ocupará 19 mil metros quadrados. As operações já começaram, em maio, com cerca de 40 funcionários.
A FAA, regulador da aviação civil dos EUA, acabou de aprovar o certificado da unidade no Rio. Isso — ao lado da certificação europeia da EASA, já obtida — permitirá atender clientes do mundo todo, explica Milton Robles, diretor-executivo da Drayton no Brasil.
Com certificações dos órgãos reguladores dos EUA e da Europa, oficina da Drayton poderá atender clientes de todo o mundo, diz Robles — Foto: Beatriz Orle
Hoje, a oficina tem capacidade de reparar 70 “pernas” de trens de pouso por ano. Com o investimento total, a meta é, daqui a dois anos, chegar a 250 pernas por ano, quando a oficina terá em torno de 250 empregados.
Segundo a RIOgaleão, que administra o terminal internacional do Rio, o polo de manutenção voltou a ganhar dinamismo desde que a United Airlines assumiu, em julho de 2023, o hangar historicamente ocupado pela Varig, com aporte de R$ 100 milhões.
De lá para cá, a unidade da United Tech Ops, divisão de MRO da aérea americana, ampliou de 500 para 800 o número de empregados, diz a concessionária. A United informa apenas que está ampliando operações de manutenção no mundo.
A brasileira Comaf também fechou acordo com a RIOgaleão para instalar ali uma oficina de componentes, com investimento de R$ 12 milhões, cujas obras ainda não iniciaram. A RIOgaleão quer trazer mais uma empresa, de “serviços de manutenção de motores e de componentes de segurança”, diz Leandro Dantas, diretor comercial da concessionária.
Oficina de turbinas será duplicada
A exploração de petróleo e gás em alto-mar é outro motor da demanda por manutenção aeronáutica por aqui, mas de helicópteros. Com o avanço da instalação de plataformas nos campos do pré-sal, mais ao sul da Bacia de Campos, Rio e Maricá vêm se destacando como bases de apoio aéreo.
Entre as firmas do ramo que têm bases por ali estão as brasileiras Omni e Líder e a canadense CHC. A Omni tem 375 profissionais de manutenção, de um total de 1,5 mil empregados em 12 bases. Segundo a diretora de Engenharia e Manutenção da empresa, Pamela Castilho, os técnicos fazem cursos de formação internos, e a companhia oferece anualmente vagas para seu programa de estágio técnico.
O Rio também tem uma oficina de motores de helicópteros da Safran, gigante francesa de equipamentos aeronáuticos e de defesa que é fornecedora da Embraer e tem outras unidades no país. A oficina de Xerém, em Duque de Caxias, originalmente da Turbomeca, comprada pela Snecma, depois daria origem à Safran. As instalações da década de 1970 e foram ampliadas em 2003.
Segundo a Safran, a unidade brasileira é um dos três centros globais de MRO de turbinas de helicópteros do grupo. Metade da frota do Brasil usa motores dela. Diante da perspectiva de aumento da frota desse tipo de aeronave na América Latina, o grupo francês informou ao GLOBO, sem citar valores, que “planeja, nos próximos meses, investir significativamente no seu site de Xerém para expandir e assim dobrar sua capacidade de reparo”.
Regulação é trava
Antônio Campos, vice-presidente da Associação Brasileira de Manutenção Aeronáutica (Mantaer), pondera que a burocracia regulatória ainda trava o crescimento mais forte do setor no país. Um dos entraves é a regulação da formação profissional, ele cita, já que os cursos de formação e os próprios profissionais precisam de certificação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Uma atualização nas regras de certificação poderia incentivar a abertura de mais cursos e, portanto, o aumento da oferta de trabalhadores especializados. Sem isso, no médio prazo, pode faltar mão de obra.
Outra demanda do setor é a revisão das regras alfandegárias da Receita Federal. As oficinas já têm um regime aduaneiro específico — para tirar a cobrança de tarifas na entrada de peças e componentes importados, que acabarão exportados de volta quando o serviço for concluído —, mas há burocracia, reclama Campos:
— Uma empresa de manutenção não pode fazer estoque de parafusos, porque a cada parafuso aeronáutico que comprar, tem de dizer (pelas regras de hoje) onde vai usar. Se não estiver com o equipamento aberto, em cima da mesa, não pode comprar o parafuso.
Capital humano: diferença na competitividade
A mão de obra qualificada — que, nos últimos anos, ficou barata na comparação internacional, com a desvalorização do real frente ao dólar — é o principal diferencial que atrai investimentos no setor de manutenção de aeronaves do Brasil, dizem executivos e especialistas.
Mesmo assim, o país sofre com a escassez de mecânicos de aviação, que atinge o mundo todo, diz o relatório da consultoria Oliver Wyman, o que reforça a importância de políticas de formação e treinamento no país.
Segundo Dantas, da concessionária RIOgaleão, o Rio tem “massa crítica” de engenheiros e mecânicos porque o hangar da antiga Varig, instalado na década de 1970, deixou uma “herança de formação de pessoas”.
O CEO da Divisão de Trens de Pouso da Drayton, Chris Creutz, não pensa duas vezes ao responder por que a multinacional escolheu o Brasil para instalar uma nova oficina: “as pessoas”.
Nos planos da empresa, as unidades do Brasil, no Galeão e no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre (RS), atenderão clientes das Américas, de norte a sul.
Para Christoffer Creutz, CEO da divisão de trens de pouso da Drayton, brasileiros têm aviação 'no sangue' — Foto: Beatriz Orle
— Já temos uma oficina em Porto Alegre, e tem muito pessoal de aviação no Brasil, gente altamente qualificada. Com a Embraer, uma das maiores fabricantes do mundo, estando no Brasil, acho que a aviação está no sangue dos brasileiros — afirma Creutz, completando que o pessoal da unidade gaúcha conseguiu contornar ao máximo os estragos causados pelas enchentes de maio.
Firjan Senai apoia com curso técnicos
Está nos planos da Drayton, à medida que a oficina de trens de pouso vai crescendo, instalar salas de aula para a formação de jovens profissionais.
A estratégia já é adotada pela GE Aerospace há anos no Rio. Segundo Luiz Froes, diretor da multinacional americana no Brasil, um curso técnico da empresa em parceria com o Firjan Senai formou 580 jovens aprendizes de 2015 a 2023, 65% dos quais foram contratados.
As unidades do Senai em Petrópolis e em Três Rios oferecem cursos de “mecânico de manutenção aeronáutica” e de “mecânico de manutenção de motores à reação”, tanto em parceria com as empresas quanto por conta própria, para trabalhadores interessados — nesse caso, a mensalidade custa a partir de R$ 380. Desde 2014, 1,3 mil profissionais passaram pelo curso, entre formados e alunos ativos, segundo o Senai.
Danilo Fagundes, coordenador operacional de Educação Profissional do Firjan Senai, afirma que é possível ampliar a capacidade de formação nas duas unidades da Região Serrana, mesmo diante do aumento da procura pelos cursos:
— Temos capacidade de ao menos dobrar o atendimento.
Fonte: O GLOBO
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