Primeira iniciativa remonta a 1998. Criadas em periferias, áreas rurais, territórios indígenas e quilombolas, divisas promovem economia solidária e ajudam a gerar renda

Pareadas ao real, as moedas sociais brasileiras têm operações bem semelhantes às realizadas na moeda oficial do país. São usadas em pagamentos do dia a dia, financiam linhas de crédito e custeiam até benefícios sociais. Mas, com circulação restrita às suas comunidades, elas têm um potencial além: incentivam a economia solidária local e promovem a inclusão financeira dos mais pobres.

A primeira experiência surgiu há 26 anos, no Conjunto Palmeiras, na periferia de Fortaleza. Com uma população empobrecida e sem trabalho formal, lideranças comunitárias desenvolveram o PalmaCard: feita num mimeógrafo, a caderneta de crédito registrava a data e valor das compras feitas nos comércios locais. No fim do mês, o usuário pagava, em real, o que tinha comprado ao Banco Palmas, que repassava os valores aos comerciantes cadastrados.

Rio lidera

O modelo foi evoluindo até a criação da moeda palmas, com cédulas de diferentes valores, e se tornar uma versão digital, pela plataforma E-dinheiro, que hoje opera as moedas sociais brasileiras.

— Todas as prefeituras e bancos comunitários que têm moedas sociais usam a plataforma, de maneira independente, pagando uma mensalidade que custeia o sistema. Temos 282 funcionários atuando na manutenção e no suporte — afirma Joaquim Melo, coordenador institucional do Banco Palmas e fundador do E-dinheiro.

Professor da FGV/Eaesp, Eduardo Diniz lembra que o surgimento das primeiras moedas sociais do mundo remontam ao início do século passado: a austríaca Wrögl e a suíça Wir, esta ainda em circulação, foram criadas em meio às dificuldades da Crise de 1929.

— Quando entramos em crise, a palavra que mais se escuta dos economistas é austeridade, ou seja, menos dinheiro circulando. Isso afeta diretamente quem é mais pobre, e as pessoas têm que inventar alternativas. As moedas sociais aparecem aí: cobrem um espaço onde há gente precisando trabalhar, mas não há dinheiro.

‘Reservas cambiais’

Assim como a palmas, do Ceará, as primeiras moedas sociais brasileiras foram criadas na época em que o real se consolidava após décadas de hiperinflação. Por isso, conta o professor, houve resistência do BC, que avaliava que as iniciativas “iam contra contra o real”. A autoridade monetária, porém, acabou mudando de ideia ao longo dos anos e hoje valida e regula as moedas sociais: elas precisam ser lastreadas no real, para não criar inflação, e ter “reservas cambiais” na moeda oficial do país.

A experiência bem-sucedida do Conjunto Palmeiras abriu caminho para outras comunidades Brasil afora, principalmente em favelas, áreas rurais e territórios indígenas e quilombolas. De lá para cá, já são 189 moedas sociais em circulação no país, sendo a maioria (178) autônomas, restritas a determinadas comunidades.

Outras 11 são apostas de governos municipais. As cidades de Indiaroba e Nossa Senhora do Socorro, no Sergipe, têm a aratu e a ipê amarelo, respectivamente, enquanto a gaúcha Santiago tem a moeda pila. O Rio lidera com a maior quantidade: pedra bonita, em Itaboraí; itajuru, em Cabo Frio; Saquarema com a saquá; a caboclinho, de Iguaba; além da elefantina, de Porciúncula, e a macaíba, de Macaé.

A primeira moeda fluminense foi uma aposta de Maricá, ainda em 2013. A cidade tem 133 mil dos seus 192 mil habitantes recebendo a moeda. A maioria dos beneficiários, cerca de 93 mil pessoas, faz parte de um programa de renda básica, que paga 230 mumbucas por pessoa às famílias registradas no Cadastro Único (CadÚnico). Além disso, o Programa de Proteção ao Trabalhador (PPT) dá cerca de 700 a trabalhadores autônomos e microempreendedores individuais (MEIs), como ambulantes, taxistas, entregadores por aplicativo e profissionais de beleza. O mesmo valor é pago aos servidores municipais, como vale-alimentação.

Problemas comunitários

A mumbuca é aceita em 16 mil estabelecimentos comerciais e prestadores de serviço da cidade, num movimento mensal de cerca de R$ 48 milhões. O prefeito Fabiano Horta (PT) explica que a política é financiada principalmente com recursos vindos dos royalties de petróleo que a cidade recebe.

— A moeda trouxe uma profunda transformação da economia local. Primeiro, ao ajudar os mais vulneráveis a ter renda, mas também impulsionando a criação de novos negócios, com geração de emprego e fortalecimento das periferias — diz Horta.

A vizinha Niterói seguiu o exemplo e, em 2021, lançou a moeda arariboia, que beneficia mensalmente cem mil pessoas de 45 mil famílias em situação de vulnerabilidade, com 218 arariboias. Ao mês, o município aporta R$ 19 milhões em distribuição de renda.

— Nosso foco são as famílias do CadÚnico, mas estamos preparando uma expansão do benefício para as mães de filhos com deficiência e autismo — planeja o prefeito Axel Grael (PDT). – Os beneficiários usam os valores principalmente com alimentos e medicamentos, ou seja, há uma melhora muito grande na qualidade de vida dessas famílias.

Assim como em outras cidades, o recolhimento de impostos funciona normalmente. Nas operações de conversão para o real, 2% ficam retidos e são direcionados para um fundo que financia iniciativas de economia solidária, como coletivos de produção, cooperativas e iniciativas comunitárias.

Solução ambiental

As operações não ficam restritas às compras em comércios locais ou serviços prestados por empreendedores da cidade. Alguns bancos comunitários ou municipais também apostam na concessão de crédito nas moedas locais.

Diniz destaca ainda o potencial das moedas sociais como incentivo para a solução de problemas comunitários. Na cidade gaúcha de Santiago, a pila verde e azul incentiva os moradores a separar corretamente lixo orgânico e materiais recicláveis. Nas cidades de Batalha, Jacaré dos Homens, Jaramataia e Major Isidoro, no sertão de Alagoas, a moeda caatinga tenta mitigar a emissão de gases poluentes da produção agropecuária. O Fundo Nacional de Permanência na Terra (Funpet) paga semestralmente mil caatingas por hectare para 500 famílias que apostam na produção agroflorestal.

— A moeda social passa a ter uma diversidade de formatos. Na crise ambiental que vivemos, é uma ferramenta importante para educar as pessoas e criar soluções alternativas — diz o especialista da FGV.


Fonte: O GLOBO