Assassinos usam residência para esconder violência, avalia pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O assassinato da produtora rural Raquel Cattani aos 26 anos, há duas semanas, causou comoção mesmo fora do Mato Grosso, pelas circunstâncias do crime. A filha do deputado estadual Gilberto Cattani (PL) foi esfaqueada em seu sítio pelo irmão do ex-marido, a mando do antigo companheiro concluiu a Polícia Civil. Mas além de revoltar, o caso resume o padrão dos casos de feminicídio no Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP): a maior parte ocorre dentro de casa (64,3%) e o responsável por 84,2% das mortes é o ex ou atual companheiro da vítima.
Segundo a Polícia Civil de Mato Grosso, os investigadores encontraram rastros deixados pelos suspeitos e indícios de que a cena do crime — ocorrido no último dia 18 — teria sido montada pelos irmãos para simular a ocorrência de um latrocínio. O ex-marido da vítima, Romero Xavier, mantinha comportamento possessivo e não aceitava o término da relação com Raquel. Quatro dias antes do assassinato, ela relatou a uma amiga estar sendo ameaçada de morte caso não reatasse o casamento, segundo uma testemunha.
Irmão do mandante, Rodrigo Xavier confessou, em depoimento à polícia, ter matado a vítima. Ele afirmou que havia combinado o recebimento da quantia de R$ 4 mil para executar o plano arquitetado por Romero, que culminou em mais de 30 facadas. Ambos foram autuados pelos crimes de homicídio triplamente qualificado em feminicídio, promessa de recompensa, e emboscada, com recurso que dificultou a defesa da vítima.
Pesquisadora sênior do FBSP, Juliana Brandão aponta que o assassinato de Raquel chama atenção para aspectos centrais da vitimização fatal feminina destacados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, referente ao ano anterior. Juliana destaca que a casa é o local mais inseguro para mulheres pela tentativa dos assassinos invisibilizarem a violência contra a mulher.
— Podemos pensar no valor simbólico da residência. É como se o que acontece entre as quatro paredes não pudesse transcender o espaço público, de forma que as relações familiares e privadas estariam salvas de qualquer intervenção do Estado — explica Brandão.
A casa da vítima foi o local de outros feminicídios com repercussão nacional, como o assassinato da adolescente Eloá Cristina Pimentel, em 2008. Ela fazia um trabalho escolar com três colegas, em Santo André (SP), quando o seu ex-namorado Lindemberg Fernandes entrou no apartamento com um revólver de calibre 32. Começou ali um cativeiro de cerca de cem horas que terminou em tragédia: a morte da jovem após ser atingida por dois tiros.
De acordo com a investigação policial sobre o caso, Eloá e Lindemberg haviam namorado por dois anos e sete meses, até a menina terminar o relacionamento por não mais tolerar o ciúme doentio e a personalidade agressiva do rapaz. Lindemberg, porém, não aceitou a decisão da adolescente e passou a persegui-la, chegando a agredi-la fisicamente. Segundo o promotor público Antonio Nobre Folgado, responsável pela acusação, ao não conseguir reatar com Eloá, o jovem passou a fazer planos de matá-la, por não admitir que ela vivesse sem ele.
Trinta anos antes, um dos casos de feminicídio mais conhecidos do Brasil, o assassinato da socialite Ângela Maria Fernandes Diniz, ocorreu em uma casa dela em Armação dos Búzios (RJ). Ela foi morta pelo companheiro, o empresário Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street.
O controle e o ciúme excessivo de Street irritavam Ângela e causavam brigas constantes. Em 30 de dezembro de 1976, o casal decidiu passar o dia na praia. Ela bebeu drinques, o que irritou o empresário. E o estopim da briga foi a chegada da alemã Gabrielle Dayer, que ele achou estar tentando seduzir Ângela. Os dois voltaram para casa e continuaram a discussão. Ângela, então, resolveu acabar o relacionamento. Revoltado, Doca deu quatro tiros na socialite e fugiu para Minas Gerais.
A história rendeu uma série de protestos, após um polêmico julgamento em que o advogado criminalista Evandro Lins e Silva marcou época ao usar a tese da "legítima defesa da honra" — invalidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado — para justificar o ato de Doca, ao mostrar a vítima como uma mulher promíscua. Ele acabou recebendo uma pena de dois anos, que foi invalidada. Com isso, o empresário foi solto.
Violência contra a mulher cresce no país
No ano passado, foram registrados 1.467 feminicídios no Brasil, um crescimento de 0,8% em comparação com 2022. Este foi o maior registro desde a publicação da lei que tipifica o crime, em 2015. Também foram verificados aumentos nas taxas de agressões em contexto de violência doméstica (9,8%), ameaças (16,5%), perseguição/stalking (34,5%), violência psicológica (33,8%) e estupro (6,5%).
As modalidades de violência atingiram mais de 1,2 milhão de mulheres no ano passado, aponta o levantamento. A única exceção de crescimento, em comparação com os dados de 2022, foi o crime de homicídio, que caiu 0,1%, o correspondente a quatro casos a menos. O documento aponta que o crescimento do feminicídio neste cenário de queda nos homicídios pode estar relacionada ao modo de se registrar a ocorrência ao longo dos anos.
O perfil das mulheres mortas de forma violenta permanece estável, sendo a maioria delas negras (66,9%). Além disso, a maior parte das vítimas tinha idade entre 18 e 44 anos (69,1%), assim como Raquel, que morreu com 26 anos.
O FBSP destaca também que os casos de feminicídios não são distribuídos de forma homogênea pelo país. Enquanto a média nacional é de 1,4 mulheres mortas por grupo de 100 mil mulheres, 17 estados têm números mais altos, como Rondônia (2,6), Mato Grosso (2,5), Acre (2,4) e Tocantins (2,4). Por outro lado, estão abaixo da taxa brasileira Ceará (0,9), São Paulo (1,0), Alagoas (1,1) e Amapá (1,1).
Os pesquisadores ressalvam que os menores índices estaduais não decorrem necessariamente de maior segurança para as mulheres naquela região, mas em grande medida da forma como o registro é feito. Como mostrou O GLOBO, o primeiro ano do governo Lula terminou sem avanço expressivo na assistência a mulheres em vulnerabilidade.
Com pouco empenho no enfrentamento da violência de gênero e sem alinhamento com os estados para implementar políticas públicas, a gestão federal não conseguiu expandir o funcionamento ininterrupto das Delegacias de Atendimento à Mulher (Deams). Um levantamento do GLOBO em 15 estados e no Distrito Federal mostra que apenas 15,2% das delegacias especializadas operavam desta forma no ano passado.
Na avaliação da pesquisadora Juliana Brandão, o aumento dos feminicídios evidencia a invisibilidade da violência de gênero, que continua sendo negligenciada. A especialista ressalta que, na maioria das vezes, as vítimas deram sinais de que estavam em situação de vulnerabilidade antes de serem mortas e sofrem muito antes de notificar as autoridades, isso quando conseguem realizar a denúncia antes de serem mortas.
— Nem sempre as mulheres recebem o acolhimento devido do poder público após a denúncia da violência vivida. Um maior engajamento das instituições estatais pode impactar a preservação da vida delas a curto prazo. Por isso, é tão importante enxergar onde está essa violência e se avançar nas estratégias de prevenção — afirma a pesquisadora.
Fonte: O GLOBO
Segundo a Polícia Civil de Mato Grosso, os investigadores encontraram rastros deixados pelos suspeitos e indícios de que a cena do crime — ocorrido no último dia 18 — teria sido montada pelos irmãos para simular a ocorrência de um latrocínio. O ex-marido da vítima, Romero Xavier, mantinha comportamento possessivo e não aceitava o término da relação com Raquel. Quatro dias antes do assassinato, ela relatou a uma amiga estar sendo ameaçada de morte caso não reatasse o casamento, segundo uma testemunha.
Irmão do mandante, Rodrigo Xavier confessou, em depoimento à polícia, ter matado a vítima. Ele afirmou que havia combinado o recebimento da quantia de R$ 4 mil para executar o plano arquitetado por Romero, que culminou em mais de 30 facadas. Ambos foram autuados pelos crimes de homicídio triplamente qualificado em feminicídio, promessa de recompensa, e emboscada, com recurso que dificultou a defesa da vítima.
Pesquisadora sênior do FBSP, Juliana Brandão aponta que o assassinato de Raquel chama atenção para aspectos centrais da vitimização fatal feminina destacados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, referente ao ano anterior. Juliana destaca que a casa é o local mais inseguro para mulheres pela tentativa dos assassinos invisibilizarem a violência contra a mulher.
— Podemos pensar no valor simbólico da residência. É como se o que acontece entre as quatro paredes não pudesse transcender o espaço público, de forma que as relações familiares e privadas estariam salvas de qualquer intervenção do Estado — explica Brandão.
A casa da vítima foi o local de outros feminicídios com repercussão nacional, como o assassinato da adolescente Eloá Cristina Pimentel, em 2008. Ela fazia um trabalho escolar com três colegas, em Santo André (SP), quando o seu ex-namorado Lindemberg Fernandes entrou no apartamento com um revólver de calibre 32. Começou ali um cativeiro de cerca de cem horas que terminou em tragédia: a morte da jovem após ser atingida por dois tiros.
De acordo com a investigação policial sobre o caso, Eloá e Lindemberg haviam namorado por dois anos e sete meses, até a menina terminar o relacionamento por não mais tolerar o ciúme doentio e a personalidade agressiva do rapaz. Lindemberg, porém, não aceitou a decisão da adolescente e passou a persegui-la, chegando a agredi-la fisicamente. Segundo o promotor público Antonio Nobre Folgado, responsável pela acusação, ao não conseguir reatar com Eloá, o jovem passou a fazer planos de matá-la, por não admitir que ela vivesse sem ele.
Trinta anos antes, um dos casos de feminicídio mais conhecidos do Brasil, o assassinato da socialite Ângela Maria Fernandes Diniz, ocorreu em uma casa dela em Armação dos Búzios (RJ). Ela foi morta pelo companheiro, o empresário Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street.
O controle e o ciúme excessivo de Street irritavam Ângela e causavam brigas constantes. Em 30 de dezembro de 1976, o casal decidiu passar o dia na praia. Ela bebeu drinques, o que irritou o empresário. E o estopim da briga foi a chegada da alemã Gabrielle Dayer, que ele achou estar tentando seduzir Ângela. Os dois voltaram para casa e continuaram a discussão. Ângela, então, resolveu acabar o relacionamento. Revoltado, Doca deu quatro tiros na socialite e fugiu para Minas Gerais.
A história rendeu uma série de protestos, após um polêmico julgamento em que o advogado criminalista Evandro Lins e Silva marcou época ao usar a tese da "legítima defesa da honra" — invalidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado — para justificar o ato de Doca, ao mostrar a vítima como uma mulher promíscua. Ele acabou recebendo uma pena de dois anos, que foi invalidada. Com isso, o empresário foi solto.
Violência contra a mulher cresce no país
No ano passado, foram registrados 1.467 feminicídios no Brasil, um crescimento de 0,8% em comparação com 2022. Este foi o maior registro desde a publicação da lei que tipifica o crime, em 2015. Também foram verificados aumentos nas taxas de agressões em contexto de violência doméstica (9,8%), ameaças (16,5%), perseguição/stalking (34,5%), violência psicológica (33,8%) e estupro (6,5%).
As modalidades de violência atingiram mais de 1,2 milhão de mulheres no ano passado, aponta o levantamento. A única exceção de crescimento, em comparação com os dados de 2022, foi o crime de homicídio, que caiu 0,1%, o correspondente a quatro casos a menos. O documento aponta que o crescimento do feminicídio neste cenário de queda nos homicídios pode estar relacionada ao modo de se registrar a ocorrência ao longo dos anos.
O perfil das mulheres mortas de forma violenta permanece estável, sendo a maioria delas negras (66,9%). Além disso, a maior parte das vítimas tinha idade entre 18 e 44 anos (69,1%), assim como Raquel, que morreu com 26 anos.
O FBSP destaca também que os casos de feminicídios não são distribuídos de forma homogênea pelo país. Enquanto a média nacional é de 1,4 mulheres mortas por grupo de 100 mil mulheres, 17 estados têm números mais altos, como Rondônia (2,6), Mato Grosso (2,5), Acre (2,4) e Tocantins (2,4). Por outro lado, estão abaixo da taxa brasileira Ceará (0,9), São Paulo (1,0), Alagoas (1,1) e Amapá (1,1).
Os pesquisadores ressalvam que os menores índices estaduais não decorrem necessariamente de maior segurança para as mulheres naquela região, mas em grande medida da forma como o registro é feito. Como mostrou O GLOBO, o primeiro ano do governo Lula terminou sem avanço expressivo na assistência a mulheres em vulnerabilidade.
Com pouco empenho no enfrentamento da violência de gênero e sem alinhamento com os estados para implementar políticas públicas, a gestão federal não conseguiu expandir o funcionamento ininterrupto das Delegacias de Atendimento à Mulher (Deams). Um levantamento do GLOBO em 15 estados e no Distrito Federal mostra que apenas 15,2% das delegacias especializadas operavam desta forma no ano passado.
Na avaliação da pesquisadora Juliana Brandão, o aumento dos feminicídios evidencia a invisibilidade da violência de gênero, que continua sendo negligenciada. A especialista ressalta que, na maioria das vezes, as vítimas deram sinais de que estavam em situação de vulnerabilidade antes de serem mortas e sofrem muito antes de notificar as autoridades, isso quando conseguem realizar a denúncia antes de serem mortas.
— Nem sempre as mulheres recebem o acolhimento devido do poder público após a denúncia da violência vivida. Um maior engajamento das instituições estatais pode impactar a preservação da vida delas a curto prazo. Por isso, é tão importante enxergar onde está essa violência e se avançar nas estratégias de prevenção — afirma a pesquisadora.
Fonte: O GLOBO
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