Chancelaria brasileira avalia que comunicado de candidato e líder oposicionista dificulta saída negociada para a crise no país vizinho

A divulgação de uma carta assinada pelo candidato à presidência da Venezuela, Edmundo González Urrutia, e pela líder da oposição, María Corina Machado, pedindo para que as instituições do país vizinho “procedam” a proclamação de González como presidente eleito, serviu como um banho de água fria para o Itamaraty, que ainda aposta em uma “saída negociada” entre o ditador Nicolás Maduro e os oposicionistas.

Interlocutores do Ministério das Relações Exteriores brasileiro avaliam que o comunicado, direcionado às forças militares e policiais que hoje servem de pilar de sustentação para o regime chavista, foi um “erro” com potencial de “dificultar” os esforços diplomáticos para que Maduro divulgue as atas eleitorais através do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), o TSE venezuelano.

“González e María Corina não ajudam o trabalho dos bombeiros”, disse à equipe do blog um importante quadro do Itamaraty sob reserva.

Isso porque a carta foi interpretada como uma “autoproclamação” de González como líder da Venezuela, o que remete à fracassada tentativa do líder opositor Juan Guaidó de se declarar presidente interino em 2019 para derrubar Maduro com o apoio dos Estados Unidos, do Brasil sob Jair Bolsonaro e da União Europeia – o que os opositores negam.

Em resposta, o procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, ex-vice de Maduro, anunciou a abertura de um inquérito criminal contra González e María Corina por instigação à insurreição e à desobediência de leis, além de “usurpação de funções”, “disseminação de informações falsas” e conspiração.

Na semana passada, o ditador venezuelano disse em um pronunciamento à imprensa que os dois opositores deveriam “ser presos”, e María Corina afirmou temer pela sua vida em um artigo publicado no The Wall Street Journal.

Transição de poder

Maduro tenta aproveitar a investigação aberta pelo Ministério Público controlado pelo chavismo, e os diplomatas brasileiros temem que iniciativas como a carta de Gonzalez deem ao ditador venezuelano a justificativa de que ele precisa para aprisionar os adversários e se distanciar de qualquer negociação por uma transição democrática mediada pelo Brasil, na visão destes interlocutores do MRE.

“Nosso esforço é pela saída negociada [de Maduro] pela cobrança das atas. Se eles vão por outro caminho, dificultam o trabalho”, disse uma fonte. “Não fazemos milagre e não temos compromisso com o erro de ninguém, como foi o caso deste comunicado”.

A reação, ainda que nos bastidores, sugere uma mudança de postura da chancelaria brasileira em relação aos apelos da oposição. Até esta segunda-feira, o Itamaraty justificava não subir o tom contra Maduro diante do sequestro de opositores e mortes de civis em protestos pela estratégia de cobrar a divulgação das atas, alinhada com os governos da Colômbia e do México e elogiada por países como a França.

Como se sabe, a Justiça Eleitoral da Venezuela proclamou Nicolás Maduro vencedor da eleição antes mesmo da conclusão da apuração, mas jamais divulgou os documentos que equivalem aos boletins de urna do Brasil.

A oposição, que recolheu pouco mais de 80% das atas das mais de 30 mil seções eleitorais no país vizinho, afirma que González venceu com 67% dos votos. Contagens paralelas conduzidas por grupos independentes também chegaram a essa mesma conclusão.

Oficialmente, o governo Luiz Inácio Lula da Silva tem condicionado o reconhecimento do resultado à apresentação das atas pelo chavismo.

Por esse raciocínio, a diplomacia brasileira não poderia atropelar as instâncias internas da política do país se a oposição não endurecer o discurso ou radicalizar sua atuação – justamente o cenário que o comunicado de González e María Corina sugere.

A aparente contradição é reflexo do desafio da diplomacia brasileira em garantir uma transição pacífica de poder sem implodir os canais de diálogo com o chavismo e o Palácio Miraflores, aliados históricos dos governos petistas, além da divulgação das atas parecer mais improvável a cada dia.

Caso não apresente os comprovantes e insista na vitória fraudada, Maduro terá rasgado o Acordo de Barbados, que prevê a retomada de sanções contra o país caribenho caso a eleição presidencial deste ano não transcorresse de forma livre.

Na última segunda-feira, 30 ex-lideranças mundiais divulgaram uma carta em que pedem uma posição mais enfática por parte de Lula no impasse venezuelano. A lista, formada em boa parte por políticos de centro-direita, conta com ex-chefes de Estado ou de governo como Mauricio Macri (Argentina), Iván Duque (Colômbia), Vicente Fox (México) e Mariano Rajoy (Espanha).

Já o presidente da França, Emmanuel Macron, telefonou para Lula também nesta segunda-feira para elogiar a mediação liderada pelo Brasil junto à Colômbia e ao México, países governados pela esquerda que mantinham relações próximas com Maduro, mas ainda não reconheceram os resultados e cobram a divulgação das atas eleitorais.

O comunicado emitido pelos três países na última semana defende que as “controvérsias” sobre o resultado da eleição presidencial sejam resolvidas pela “via institucional” e com a “verificação imparcial dos resultados”.


Fonte: O GLOBO