Envolvido em troca por prisioneiros ocidentais, casal russo provavelmente fazia parte de rede de espiões adormecidos, chamados de "ilegais" pelo Kremlin

Darja Stefancic, uma pintora eslovena conhecida por paisagens em technicolor, achou estranho quando uma obscura galeria de arte on-line administrada por uma mulher da Argentina a contatou do nada e a convidou para se juntar à sua pequena lista de artistas. A pintora suspeitou de um golpe e se preocupou que a galeria, da qual praticamente ninguém na pequena e unida cena artística da Eslovênia tinha ouvido falar, quisesse "enganar as pessoas". Ela queria — mas de maneiras que superavam até mesmo as suspeitas mais sombrias de Darja.

A galeria on-line era uma fachada para a inteligência russa, parte de uma elaborada rede de espiões disfarçados treinados para se passar por argentinos, brasileiros e outros estrangeiros pela agência de inteligência estrangeira da Rússia, a SVR, pela Europa. Eles eram versões reais das estrelas fictícias de "The Americans", uma série de televisão inspirada na prisão de uma rede de verdadeiros agentes russos disfarçados nos Estados Unidos, em 2010.

A Rússia, e antes dela a União Soviética, tem um longo histórico de investir pesadamente nos chamados "ilegais", espiões que se aprofundam em países-alvo ao longo de muitos anos. Ao contrário dos espiões "legais" que operam sob cobertura diplomática em embaixadas russas, eles não têm imunidade de processo ou conexões óbvias com a Rússia e são extremamente difíceis de detectar.

Vladimir Putin, presidente da Rússia e ex-oficial da KGB, "dedicou enormes recursos a essa prioridade bastante excêntrica", disse Calder Walton, diretor de pesquisa do Projeto de Inteligência da Escola Kennedy de Harvard.

— Ele tem um verdadeiro fetiche por ilegais que remonta à sua época na KGB — disse Walton.

A dona da galeria de arte na Eslovênia, cujo nome verdadeiro é Anna Dultseva, fez um trabalho tão bom personificando uma argentina chamada Maria Rosa Mayer Munos que, de acordo com o Kremlin, nem mesmo seus dois filhos sabiam que a família tinha laços com a Rússia até que foram levados de avião para Moscou na quinta-feira, como parte de uma extensa troca de prisioneiros com o Ocidente.

Presidente russo, Vladimir Putin recebe cidadãos russos libertados em troca com o Ocidente — Foto: Kirill ZYKOV / POOL / AFP

Putin cumprimentou as crianças — uma menina de 12 anos e um menino de 9 anos — em espanhol, a língua que a família falava na Eslovênia, junto com o inglês para disfarçar suas conexões com a Rússia. "Buenas noches", Putin pode ser ouvido dizendo em um vídeo da cerimônia de boas-vindas em um aeroporto de Moscou divulgado pela televisão estatal. Também os cumprimentou Sergey Naryshkin, chefe da agência de inteligência SVR.

Tanto Dultseva quanto seu marido foram presos em dezembro de 2022 quando autoridades eslovenas, que monitoravam o casal há meses após uma denúncia de um serviço de inteligência estrangeiro, invadiram a confortável casa da família em Crnuce, um subúrbio de Liubliana, capital da Eslovênia.

Uma pessoa informada sobre o caso disse que a invasão foi programada para pegar o casal em flagrante enquanto eles se comunicavam com Moscou usando equipamentos especiais que evitavam linhas telefônicas e de internet. A denúncia, disse essa pessoa, veio do Reino Unido, que o casal visitava com frequência sob o disfarce de negócios. Dultseva organizou duas exposições de arte na cidade escocesa de Edimburgo, visitando a ilha britânica várias vezes como Mayer Munos.

O que Dultseva e seu marido, Artem Dultsev, que se disfarçou na Eslovênia como um argentino chamado Ludwig Gisch e administrava seu próprio negócio falso, uma startup de alta tecnologia, conseguiram como espiões antes de suas prisões em 2022 ainda está sendo avaliado.

Vida discreta, gastos suspeitos

Vizinhos em Crnuce, o distrito de Liubliana onde o casal morava, dizem que a família era reservada, tinha um cachorro pequeno e raramente recebia visitas.

As crianças, que foram colocadas em um orfanato após as prisões dos pais, frequentavam a vizinha British International School, cujas taxas — mais de US$ 10 mil (R$ 58 mil) por ano por aluno — estavam muito além do que o casal podia pagar com base nos relatórios financeiros que eles apresentaram para seus negócios.

A galeria de arte de Dultseva, chamada 5'14, relatou um prejuízo de 10.827 euros (R$ 69 mil) em 2019, um lucro de 483 euros (R$ 3 mil) em 2020 e um lucro de 3.032 euros (R$ 19,3 mil) em 2021, o último ano para o qual apresentou seus resultados anuais às autoridades.

Os resultados modestos e a baixa qualidade das obras de arte da galeria, disse Tevz Logar, um importante curador esloveno, deveriam ter despertado suspeitas. Mas a arte na Eslovênia "é um espaço seguro" porque "não há escrutínio ou controle", acrescentou.

A maior parte do trabalho que Dultseva ofereceu para venda, disse ele, "é o tipo de arte que você encomenda da China".

A empresa de seu marido, DSM & IT, relatou lucros totais de apenas alguns milhares de euros a cada ano. Ambas as empresas tinham apenas um funcionário.

— Eles nunca cumprimentaram ninguém e viviam vidas completamente separadas — disse Majda Kvas, uma mulher de 93 anos que mora em frente à antiga casa dos espiões, uma casa de três andares com um pequeno jardim cercado por uma cerca de madeira.

Majda Kvas, vizinha do casal de espiões russos na Eslovênia — Foto: Manca Juvan/The New York Times

Os vizinhos, disse Kvas, às vezes fofocavam sobre quem era o casal e o que estavam fazendo, mas geralmente os ignoravam, pois nunca causavam problemas.

— Achei que fossem da Venezuela — disse ela.

'Espiões adormecidos'

Vojko Volk, secretário de estado da Eslovênia responsável pelos serviços de segurança e inteligência, disse na sexta-feira que os investigadores ainda estavam tentando descobrir o que o casal estava fazendo exatamente antes de sua prisão em 2022.

— Não tenho dúvidas de que eles eram muito, muito, muito importantes — declarou.

A descoberta de grandes somas de dinheiro na casa gerou especulações de que eles talvez estivessem envolvidos no financiamento de operações russas, incluindo equipes de sabotagem pela Europa. Mas Volk minimizou essa possibilidade.

Marjan Miklavcic, ex-chefe da inteligência militar da Eslovênia, disse que agentes russos adormecidos eram frequentemente plantados sem uma missão clara e serviam como uma força de reserva oculta que poderia ser ativada em um momento de crise.

O falso casal argentino se mudou para a Eslovênia em 2017, mas, segundo ele, provavelmente só foi totalmente ativado após o início da guerra em larga escala na Ucrânia, cinco anos depois, quando supostos espiões foram expulsos de vários países europeus.

Embaixada russa em Liubliana, na Eslovênia — Foto: Manca Juvan/The New York Times

Em novembro de 2022, o chefe do serviço de segurança MI5 do Reino Unido disse que mais de 400 espiões russos foram expulsos de toda a Europa, desferindo "o golpe estratégico mais significativo contra os serviços de inteligência russos na história europeia recente".

A desordem nas redes de espionagem da Rússia, disse Miklevcic, significou que a Rússia perdeu "muitas de suas fontes regulares de informação" e provavelmente "ativou agentes adormecidos" para tentar preencher as lacunas.

Os argentinos falsos parecem ter sido agentes de alto calibre. Dultseva, a dona da galeria, falava espanhol sem sotaque, de acordo com Mariken Heijwegen, uma artista holandesa que a usou como agente de vendas. A artista disse que conheceu Dultseva em uma feira de arte na Croácia e vendeu duas de suas pinturas graças à russa.

— Ela parecia uma argentina — lembrou Heijwegen, acrescentando que a russa era "muito doce e gentil".

A artista disse que não tinha ideia de que a mulher que conhecia como Maria Rosa Mayer Munos havia sido presa como espiã russa até que as pinturas que ela havia deixado com ela na Eslovênia foram repentinamente enviadas de volta para a Holanda.

Damian Kosec, um veterano da cena artística da Eslovênia e dono da maior galeria on-line e física do país, disse que nunca tinha ouvido falar dos negócios de Dultseva até que a notícia da prisão dela e do marido estourou na mídia.

Escolher a arte como fachada, ele acrescentou, fazia sentido, já que "há tão pouco dinheiro nisso na Eslovênia que ninguém no governo presta atenção".

Ele disse que vinha pressionando em vão as autoridades por anos para reprimir operadores desonestos que vendiam falsificações.

— Ninguém se importa. Você pode fazer o que quiser no negócio da arte aqui — disse ele. — Esses russos não se importavam com arte. Eles só precisavam de um negócio para se esconder.


Fonte: O GLOBO